Capítulo 1 - Os olhos de Clara

1.8K 102 284
                                    

Bem, vamos lá! Não sei bem como começar, mas vou tentar mes­mo assim. "O importante é tentar!" Foi o que dis­se o meu amigo João.

Para falar a verdade, par­ticular­mente, eu não acredito nes­se negócio de psicografia, muito menos de mediunidade. Mas, olha, você que está lendo, não se ofen­da se você acreditar. Eu não tenho nada contra quem acredita e muito menos sou o dono da verdade. Também não tenho o propósito de discutir religião nestas minhas me­mó­rias. Quero dizer, minhas, não... Nas memórias deste cara que está querendo falar aqui dentro da minha cabeça. Diz o João que é um espírito e que eu sou médium. Por isso, esse tal espírito teria resolvido mandar a mensagem dele por mim.

Talvez ele precise que eu o ajude a desven­dar algum mistério. Ou talvez queira simplesmente que eu psicografe a história dele para servir de exemplo para outras pessoas. Eu acho mesmo é que ele está querendo tirar uma onda com a minha cara. O João não concorda. Ele disse que é mais certo que o tal espírito queira mesmo tornar a sua história conhecida para ser­vir de exem­plo, para ajudar as pessoas. E o João é um ca­ra em quem eu posso confiar. É meu amigo há muito tempo. Mas acho melhor eu parar de falar de mim e do João e co­meçar a escrever logo o que o falecido está "pedindo". Que­ro dizer, o espírito. Não vou chamar ele de falecido, não. Fica esquisito falar assim e também não gosto de pensar que tem um defunto dentro da minha mente. Cruz credo! Deus me livre! Vou pensar como o João me ensinou: um espírito é um ser abstrato, desvinculado de um corpo, logo, não é de­fun­to. Assim fico mais tranquilo.

Então, deixa eu ver por onde começo a história do es­pí­ri­to. Pensando bem, esse negócio de chamar o espírito de espírito também não está legal. E você que está lendo pode não gostar disso, não é mesmo? E ainda há a possibilidade do João estar errado e não existir espírito nenhum. Espe­ra aí. Como eu poderia chamar esse... esse... esse "ser"? É du­ro você escrever coisas de quem nem sabe o nome. Não sei de quem se trata, nem de que se trata o que esse quem quer dizer. Ah! Está aí o que eu queria! Quem! Vou chamar o "ser" de Quem.

Que fiquem sendo essas memórias, as memórias de Quem. Assim ninguém fica chateado com ninguém. Deu até rima! Dizem que rima em texto em prosa não é muito apro­priado. Deixemos de lado essa preocupação estilís­tica, afi­nal, quando o Quem me escolheu, sabia bem que eu não era um escritor. E dizem também que a pessoa que psico­grafa livros escreve do jeito que o espírito quer. Logo, das duas uma: ou o Quem escreve como eu, ou não é nada disso que está acontecendo. E se não for isso, então, eu preciso descobrir o que é.

De um jeito ou de outro eu preciso começar logo a falar do indivíduo que invadiu meus pensamentos e está usando minha memória como se fosse a dele. Aquele meu amigo que é meio espírita... Meu Deus! Como é mesmo o nome dele? Eu escrevi sobre ele não faz muito tempo. Bem, você deve se lembrar. Mas como eu posso ter me esquecido? É um dos meus melhores amigos. Ou será que não é? Não me lembro mais. Só me lembro dos olhos de Clara. Isso mesmo, de Clara. Foi assim que Quem começou a arrombar minhas gavetas cerebrais. Colocou nelas umas fotos, alguns sorrisos, uma doce lembrança e olhos magnéticos. Foi totalmente de repente. Ela apareceu em minha mente como quem atra­ves­sa uma rua.

Estava voltando para casa, depois de um intenso dia de trabalho e comecei a me lembrar de Clara. Ela tinha cabelos e olhos negros; pele bem branca; nariz delicado, fino e pequeno; lábios nem finos demais, nem grossos; corpo magro, altura mediana. Seus braços eram deli­ca­dos e suas mãos pequenas. Os cabelos negros de Clara desciam um palmo a­bai­xo de seus ombros. O que mais me chamava a atenção nessa linda e frágil mu­lher eram os seus olhos, sem dúvida ne­nhu­ma. Traziam o magnetismo de um luar de verão! Atraíam, hipnotizavam e inebriavam a quem quer que os olhasse. E isso tudo era para mim uma verdade absoluta. Não era uma opinião. Eu sabia disso e ponto. Foi quando me assustei e comecei a lutar contra esses pensamentos. Percebi que Clara não havia feito parte de minha vida de fato. Como, então, eu poderia tê-la assim tão forte em minha lembrança?

Continuei caminhando e a rua foi se transformando em um barco. Navegava com o vento em meu rosto e Clara ao meu lado. Percebi que eu não era mais eu. Mas ao mesmo tempo, era. E a baía de Guanabara apresentava-se aos meus olhos como se eu realmente estivesse estado lá. Eu nunca estive no Rio de Janeiro. Nem sabia que Niterói ficava do outro lado da baía. Agora sei.

Sacudi a cabeça, esfreguei os olhos e percebi que tudo não passara de mais uma lembrança. Eu permanecia na mesma rua de antes, parado em frente à estátua da praça. Parecia um idiota a admirar outro. Nem me lembro quem era o cara da estátua. Deveria me lembrar, pois moro aqui desde que nasci. Mas tudo bem. Quando eu me lembrar, eu digo quem é. Vou perguntar para o João. Ah! É isso! João é o amigo de quem eu tinha esquecido o nome. Engraçado eu ter lembrado agora. João Victor, meu velho e bom amigo. Mui­to es­tra­nho eu ter esquecido.

Naquele dia, cheguei em casa totalmente transtornado. Acho que nem precisava dizer isso, mas você entendeu, não é? Quis apenas reforçar com palavras o que já estava óbvio. Enfim... Revirei a minha gaveta de fotos, em busca de al­guma coisa que me devolvesse a paz. Queria encontrar Clara ali. A gente nunca sabe as peças que nossa mente pode nos pregar. Vai que eu realmente conhecesse Clara e apenas não estava tendo certeza disso. Sei lá... Achava isso meio difícil, mas não custava dar uma olhada. Foi em vão. Nenhum sinal dos olhos de Clara. Muito menos de qualquer lugar que se parecesse com a baía de Guanabara. Porque lá eu sabia que nunca estivera.

Resolvi dormir e tentar esquecer tudo que acontecera. Porém, no dia seguinte, o que era uma "fina garoa" se transformou em uma "tempestade torrencial". O tal do Quem re­solveu arrombar os arquivos de minha memória e se alojar em todos eles.

Gostou desse primeiro capítulo? Então, vote, comente, compartilhe e indique aos seus amigos!

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.


Gostou desse primeiro capítulo? Então, vote, comente, compartilhe e indique aos seus amigos!

Memórias de QuemWhere stories live. Discover now