Capítulo 4 - Cenas de uma vida inacabada

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Continuei conversando com o João naquela tarde de sábado. Depois do desabafo sobre Clara, consegui dominar meus impulsos e passei a contar a ele como tudo tinha acontecido, desde o dia anterior. À medida que eu falava, sentia que minhas lembranças estavam voltando.

Reconheci imediatamente o irmão do João, assim que ele passou pela sala onde estávamos. O João me alertou sobre isso. Ele disse: "sua memória está voltando, cara!". Foi quando eu me dei conta de que, ao falar sobre as memórias de Quem, minhas próprias memórias voltavam a ocupar o espaço de minha mente que havia sido invadido. Era como substituir fichas em um arquivo. Algo realmente intrigante e incompreensível.

O João ficou pasmo! Parecia que o invasor queria mesmo me forçar a contar a sua história. E a maneira que ele encontrou para me persuadir, foi roubar minhas lembranças, enquanto eu não propagasse as dele.

Foi aí que o João me deu a ideia de escrever tudo o que estava se passando. Eu não achei a proposta muito atraente, porque nunca gostei de escrever e disse para o João que isso não daria certo. Porém, ele insistiu que essa seria a única solução. Como eu sou muito teimoso, não concordei.

Fui embora e fiquei de falar com ele depois. Passei o resto do sábado em casa e o domingo também. Para minha surpresa, nada de novo surgiu em minha mente nesse período. E, além disso, minha memória voltou completamente, meu cachorro me reconheceu e o cara do espelho era eu mesmo. Fiquei aliviado, mas não tranquilo.

Na segunda-feira, resolvi marcar uma consulta com um psiquiatra. Acontece que, como não tenho plano de saúde, essa consulta ficou para o mês seguinte. E esse dia ainda não chegou. Você entendeu, não é? Hoje, faz uns quinze dias que começou essa loucura. Então, a consulta será daqui a uns vinte dias. Eu preciso ver a data exata na minha agenda. Ah! Esqueci-me de falar... Comecei a anotar tudo na minha agenda para evitar mais problemas.

Bem, como não consegui falar logo com um médico, deixei a vida seguir. E tudo corria bem até o sábado seguinte, quando recomeçou a "invasão". Parecia, realmente, que o tal do Quem estava querendo tirar uma com a minha cara. Estava estragando todos os meus finais de semana. Que raiva! Fazer o quê? Era assim que ele queria e eu não tinha - nem tenho - como alterar essa situação. Pelo menos ainda não descobri como, a não ser escrevendo essas memórias.

Quando acordei naquele segundo sábado fatídico, um turbilhão de emoções me levou a um terrível torpor. Eu via as cenas de toda uma vida passando pela minha mente numa velocidade supersônica. Uma terrível queda que me fez gritar de dor, a morte trágica de alguém que eu chamava de pai, a primeira desilusão amorosa, a traição de um amigo, o beijo de Clara... A luz, a cruz, o medo, a escuridão, o céu, o mar, a pedra, a rua deserta, o olhar de Clara... A tempestade, o dia de sol, a festa, os amigos cantando parabéns, o menino pedindo esmola, o toque de Clara... O carro, o freio, o vidro, o vermelho escorrendo, o branco, o breu, a voz de Clara... O choro, o desespero, o silêncio, os sonhos, o nada, o cheiro de Clara... Sim, era ela quem me guiava por verdes colinas a caminho do mar. Era ela quem tornava meus dias mais lúcidos, transparentes e, sobretudo, suportáveis.

Clara era quase tudo que havia de bom nessa vida a mim revelada, mas também parecia ser a razão de sua decadência. Isso faz sentido, pois se ela foi embora, certamente Quem sofreu ou ainda sofre muito com isso. Eu digo "ainda sofre" porque tenho a estranha sensação de que ele ainda existe, ainda vive. Sei que isso parece uma contradição, mas não é. O João acha que é, justamente porque ele pensa que o Quem é um espírito. Logo, sendo um espírito, já teria morrido. Eu, sinceramente, não tenho tanta certeza disso.

Foi naquele sábado que nasceu essa dúvida. Como eu disse, as cenas se sucederam em minha mente, mas de maneira desconexa. E nada se pareceu com um fim. Tive a nítida impressão de que ainda havia muito a acontecer. Sei lá...

Será que estou mesmo ficando louco? Eliza disse que sim. Falei com ela no domingo passado. Foi naquele dia que me convenci a começar a escrever. Era a única alternativa que eu tinha. E está dando certo, por enquanto. Mas a conversa com Eliza foi muito difícil. Ela me falou coisas que eu não sabia e outras que eu já havia esquecido.

O que Eliza pode ter dito ao nosso confuso protagonista? Será que ele está mesmo enlouquecendo? Você acha que Quem pode não ser um espírito invasor, como pensa o João? O que ele seria, então?

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O que Eliza pode ter dito ao nosso confuso protagonista? Será que ele está mesmo enlouquecendo? Você acha que Quem pode não ser um espírito invasor, como pensa o João? O que ele seria, então?

Memórias de QuemWhere stories live. Discover now