capítulo três

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Ontem eu coloquei água da pia no fogo para fazer chá e fui dormir. Você não entendeu errado. Esqueci a chaleira no fogo e fui dormir como se não tivesse nenhuma outra preocupação.

Acordei com a fumaça tomando conta da casa, corri (ou algo parecido com isso) imaginando um incêndio e encontrei a chaleira gritando vazia no fogão. A memória me foge às vezes. É terrível, como se não tivesse mais total controle sobre mim mesmo.

É pouco provável que a sua memória esteja tão ruim quanto a minha, mas, mesmo assim, vou te relembrar brevemente onde paramos a história do...

	É pouco provável que a sua memória esteja tão ruim quanto a minha, mas, mesmo assim, vou te relembrar brevemente onde paramos a história do

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Maria e Davi estavam dentro do ônibus juntos e sentiam uma corrente elétrica invisível passeando entre eles. De Maria para Davi, de Davi para Maria, de Maria para Davi. Eles sorriam e contavam histórias engraçadas um para o outro.

Estavam passando um excelente tempo juntos quando o celular de Davi vibrou.

"Davi, corre para o bairro. O seu irmão acabou de ser baleado na praça. Ele não aguentou e morreu"

Davi não esboçou reação alguma, apenas continuou encarando a tela do aparelho (sua luz azul impessoal iluminando o rosto do rapaz) em total e completo silêncio. Maria notou que ele parecia uma daquelas esculturas gregas, eternamente congeladas com a mesma expressão e músculos rígidos. Algo estava errado.

- Davi? Está tudo bem? - Ela perguntou.

- Eu não estou conseguindo respirar direito - ele se limitou a dizer.

E era verdade, o ar parou de fazer sentido dentro da sua boca, nariz e garganta. Respirar deixou de ser uma atividade natural, o corpo não obedecia mais a ordem de puxar oxigênio e soltar gás carbônico. Ele estava afogando no seco.

- Você tem asma? - Maria se desesperou com a situação e sentiu o seu coração acelerar - Quer que eu chame uma ambulância?

- Não, não precisa - Davi respondeu, fazia tanto esforço para respirar que as outras pessoas do ônibus logo notaram e começaram a lançar olhares curiosos e preocupados.

Colocou os cotovelos sobre os joelhos se concentrou em tentar fazer o ar voltar circular pelo seu corpo. Aos poucos, foi melhorando.

- Chegamos no ponto perto da sua casa - ele disse. - Vamos descer!

- Sim, sim - Maria respondeu, sem saber como agir naquela situação.

Quando Davi levantou do banco, sentiu o mundo girar. Era como se estivesse andando embaixo d'água ou na lua. Apesar dos seus pés tocarem o chão, ele sentia como se nada tivesse peso ou impacto. Mesmo assim, conseguiu andar em linha reta para descer do ônibus e acompanhou Maria até a porta da sua casa que era exatamente como imaginou que seria: grande, bonita, com um muro enorme, daqueles que garantem a segurança de pessoas muito ricas.

- Muito obrigada por me trazer aqui - Maria disse. - Você não quer entrar e esperar melhorar um pouco? Seu rosto está pálido!

- Não, não precisa - Davi respondeu. - Eu estou bem e tenho que chegar em casa o mais rápido possível. - e depois acrescentou com um tom quase casual de quem cresceu aprendendo a esconder os seus sentimentos, de quem sabe que demonstrar fraqueza pode ser a diferença entre a vida e a morte e quem conviveu, desde que se entende por gente, com o tipo mais cru de violência. - O meu irmão acabou de morrer.

O CLUBE DOS JOVENS QUEBRADOSWhere stories live. Discover now