Prólogo

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Rio de Janeiro.

O halo do sol esmorecia mansamente, ampliando um manto negro sobre uma paisagem formosa. No cume do imenso rochedo, erguia-se a opulenta igreja de nossa senhora da penha.

No interior da galeria deslumbrante, um punhado de crentes lotava como suas entradas.

- Minhas senhoras e meus filhos são com enorme alegria que terminaram nossa angariação de fundos para crianças desfavorecidas.

O sorriso rasgado do clérigo contagiava a assembleia.

- É maravilhoso, até dá vontade de chorar - A sensibilidade da dona Luísa veio à tona.

- É realmente conveniente, todo mundo exibido e quando isso acontece, é uma prova de que a união faz força, Deus seja louvado.

Amém - O coro de vozes se espalha pelas divisões da igreja, levando consigo um rasto de alegria.

- Nossa! Anabela, quem é o bonitão ao lado do padre?

- Chiu. Não é para o seu bico, mas devo admitir que é...

- Controlem-se alcoviteiras! O garoto quer ser padre - Interpelou dona Luísa.

- Mas dona Luísa foi tão um comentário...

- Este é Daniel Cortez, meus senhores, meu novo ajudante.

«Podia ser meu amante, eu sou uma garota trincada» Anabela mordiscava ou lábio inferior deslumbrado com a juventude do rapaz.

- Ai Jesus, livrai-nos da concupiscência de carne - Adélia lanço um olhar ofegante para o belo moço.

‑ Ora, realizada mais uma boa ação, eu quero pedir aos irmãos que juntem as mãos para terminarmos com uma oração.

Pai Nosso, que estais no Céu; santificado seja o Vosso nome; venha a nós o Vosso reino; seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai‑

‑nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos


tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai‑nos

do mal. Amém.

Agradeço a todos, ide em paz que Deus vos acompanhe.

A enorme multidão começou a dispersar‑se na grande sala, enquanto o padre e o seu ajudante despediam‑se calorosamente, Alberto Cearense o responsável pela organização da quermesse ajudava o padre a erguer a pesada urna até a uma pequena sala secreta.

O padre Santiago revezava as últimas admoestações aos fiéis, era um homem reto e acolhedor.

***

Ecos de passos sobejos cortaram o silêncio da noite, assom‑ brando a arquitetura pitoresca. A moeda de luz que jorrou da lanterna, cedia passagem ao espetro. Movia‑se gelatinosamente em busca da doce urna.

A sombra, após refletir‑se nos vidros embaciados que deco‑ ravam a grande edificação, esgueirou‑se pelo curto corredor ser‑ penteando os vastos assentos, olhou para o relógio aguardando timidamente pelo romper da meia‑noite, a hora fantasma.

Da janela, a luz rubente do binoculo não detetara calor huma‑ no no rochedo que cobria a santa casa e uma vez confirmado o nulo, a cidade maravilhosa erguia as plumas e deixava‑se seduzir pela azáfama que a retratava. Lá em baixo, o formigueiro de luzes decorava a cidade que Jesus Cristo fizera questão de abrir seus braços num gesto fraterno. A vegetação tropical unia‑se com a modernidade do século numa metamorfose requintada. «Oh, cidade maravilhosa» sorriu e depois de deleitar‑se naquela vista privilegiada, abriu a pequena mala que trazera no ombro, emer‑ gindo a chave mestra.

O olhar perscrutador sondou as estátuas caladas que teste‑ munhavam o pecado... Calou‑se a fria respiração dando início a uma aceleração cardíaca, ainda assim, paulatinamente o intruso deixou‑se afagar pela sala secreta. O foco da lanterna bateu sobre uma superfície revelando outro vulto... O coração subiu‑lhe pela garganta com o baque pondo‑se numa posição defensiva. A som‑ bra roubou‑lhe a coreografia para espanto do intruso. Mudou de


posição erguendo um estranho metal. Um homem. Um homem de olhos verdes claros e vestes iguais às dele.

‑ Ah! Que susto – murmurou.

Reparou, que a sua imagem refletia‑se num espelho que ali repousava, teve vontade de rir mas os lábios rasgaram‑se num ato forçado, focando a sua missão. O vento que bateu na janela abanou as imensas folhas pousadas numa secretaria roubando‑

‑lhe novamente a atenção... Deixou‑se seduzir pelo vento, alarmado com o ar sibilino que caia sofregamente naquela sala sepulcral.

Caminhou em segredo sobre o piso suave mantendo a delicadeza nos passos até que avistou um pequeno armário e deixou‑se guiar pela doce certeza. A luz dos seus olhos exóticos fotografou pequenos acessórios religiosos à medida que descia o seu pensamento procurando o seu alvo maior.

A urna dos dízimos.

A luz dos seus olhos explodiu num cintilar de exaltação, lan‑ çando um sorriso prosaico, estava na hora de morder a maçã, não precisava de ser amolecido pela voz da serpente, ele era a serpente e queria a árvore inteira. O estranho objeto que trouxera no bolso do casaco permitiu‑lhe romper a doce urna, satisfazendo‑se com os louros.

Uma mão aveludada cavou a urna erguendo um montante surpreendente, a igreja, além de servir como palco para pagado‑ res de promessas, festas folclóricas ou terminal de procissões, nas últimas semanas os crentes foram generosos respondendo ao apelo do clérigo. No silêncio do seu primeiro pecado, arrastou consigo o ato tão nobre em benefício dos pobres.

Deixava o palco do seu passaporte para o mundo marginal, no cruzar e descruzar de passos desenhados e delicados, dissipou‑

‑se na escuridão sinistramente.

Estava consumado o primeiro crime de Daniel Cortez.

o assassino de corações - Falsa SubmissãoWhere stories live. Discover now