A Cidade Maravilhosa

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Otávio


Rio de Janeiro, maio de 2019.

Dizem que a natureza consegue pressentir grandes derramamentos de sangue. Há quem acredite, por exemplo, que no ano que sucedeu o Período do Terror na Revolução Francesa, os ratos de Paris se multiplicaram anormalmente e invadiram os cemitérios da cidade, numa tentativa de mostrar às pessoas onde muitas delas iriam parar em breve.

Há ainda quem jure que choveu ácido quando a Peste Bubônica começou a ceifar vidas profusamente na Eurásia, e que o Rio Paraguai se agitava e borbulhava em 1864, antes da Guerra do Paraguai. Acredite ou não, seja supersticioso ou não, o fato é que naquela noite de maio o mar estava inquieto no litoral do Rio de Janeiro, parecia até borbulhar.

Mas nunca foi necessário nem um prenúncio natural. As pessoas também sentem. Nós ainda temos instintos que sussurram alertas em nossos peitos, instintos quase sempre corretos. Aquela sensação inexplicável de que tudo está normal demais, e de que algo está faltando, ou seja, a sensação de estranhamento frente ao normal... Era isso que Otávio sentia enquanto dirigia a viatura numa patrulha no centro da cidade.

Ele conduzia o volante com firmeza, os olhos escuros bem abertos, pois como membro da polícia militar numa cidade hodiernamente tão violenta, ele não podia se dar ao luxo de pestanejar. No banco do passageiro estava Leandro, seu parceiro de longa data, que mantinha o silêncio de um patrulheiro cansado ao fim de expediente, não o silêncio vigilante de Otávio.

Mas é claro que na sua vigilância ele também divagava. Refletia sobre como a cidade tinha mudado, pois agora todos viviam com pavor e era constante a troca de olhares desconfiados entre as pessoas. Tudo começou há três semanas, com o noticiamento de um massacre no Hospital da Orla, um sinistro atentado que deixou trinta mortos e muitas paredes encobertas de sangue. Após isso se tornaram comuns notícias sobre desaparecimentos, assassinatos grupais e o surgimento de seitas, e o mais estranho é que os jornais se contradiziam sobre esses acontecimentos, o que deixava todas as histórias descreditadas, e assim o mistério paranoico tomou conta do imaginário dos cidadãos. Porém, em uma coisa todos jornais pareciam concordar: as principais comunidades do Rio estavam isoladas já há quinze dias, postas em quarentena e vigiadas pelo exército, o motivo seria um vírus novo. Especulava-se que era uma variante do vírus zica, e chamavam-no de vírus expuli.

Trabalhar nas ruas gerava contatos, possibilitava ouvir boatos e conversas de quem vive na pele a situação atual da cidade. E o que se percebia nas ruas cariocas era uma situação de tensão gradativa, daquele tipo que é crescente e prenuncia um horror indizível. As pessoas evitavam sair de casa, na noite as ruas parcamente iluminadas ficavam abarrotadas de vultos estranhos e moribundos, mendigos mal-encarados. Até os tiroteios tão frequentes do ano passado e retrasado haviam diminuído, e agora se limitavam a uma ou duas madrugadas de tiroteio pesado nas localidades próximas às comunidades, a cada quinzena e nos intervalos entre eles, nenhum disparo sequer.

Diante disso, constantemente pensava em se mudar com sua família, Liara, sua filha de oito anos e sua esposa Marta. Não seria tão difícil, tinha parentes em Minas Gerais... Quando Otávio virou a viatura à esquina foi possível ler uma pichação nova num prédio de comércio. "Dor é a moeda de troca dos pecadores". Nova porque pichações haviam se tornado  febre também, feitas geralmente com frases pouco convidativas e incompreensíveis, muitas das vezes associadas pela população paranoica às supracitadas seitas. Todo esse cenário, toda essa mudança causava desconforto em demasia nele. E ele ainda não entendia o que se passava... As coisas não faziam sentido.

— Vira na próxima rua, o fim da avenida está interditado também, lembra? — recomendou Leandro, interrompendo os pensamentos de seu parceiro.

Otávio assentiu com um movimento da cabeça.

"Interditado" significava com acesso restrito, sendo vigiado pela força armada brasileira, e cuja presença se tornava cada vez mais comum, desde 2018.

Otávio franziu seu cenho claro, adquirindo uma expressão carrancuda. Armado apenas com um corpo robusto e uma Tauros ele se perguntava o que o exército insistia em vigiar com armamento pesado. Será que o que tenho é o bastante para garantir minha segurança? A segurança da minha família? Será que eu sou o bastante?

A realidade é que ele não sabia de muita coisa, e isso causava um profundo irritamento, ter de agir sem saber, ou simplesmente não saber o que está acontecendo a sua volta era inquietante. Pegava a esquerda como Leandro pediu quando o rádio da viatura entoou som:

— Atenção! Todas as viaturas do centro e proximidades sigam para a Avenida Rio Branco. Repito! Todas as unidades disponíveis no centro e redondezas se dirijam imediatamente ao cerco na Avenida Rio Branco.

— 147 dando seguimento, central. — Leandro respondeu prontamente com uma voz carregada de sotaque carioca.

E assim seguiram para a avenida. Não demorou muito, pois estavam bem próximos, contudo algo inesperado ocorreu quando faltava uma quadra para chegar: a energia da região cessou abruptamente. Num piscar de olhos tudo perdeu a luz — casas, postes, e a própria lua parecia fraquejar — A sensação que dava, ali tão perto do litoral, era a de que o próprio mar estava imergindo aquela parte da cidade, isolando-a dos demais bairros e sugando-a para as profundezas do atlântico... Imersos em escuridão total.

A única coisa que fornecia alguma possibilidade de visão eram os faróis do veículo, e as luzes dos outros veículos da avenida mais à frente.

Chegando lá, a dupla percebeu diversos pelotões do exército se pondo em formação atrás de blindados, carros, e até mesmo um carro de combate se fazia presente entre as fileiras de guerra. Viaturas da polícia militar se reuniam ao imponente festim bélico e formavam uma barragem humano-metálica no meio da larga avenida. À frente da barragem a escuridão e a quietude eram quase totais, irrompidas apenas por focos de incêndio indistintos no meio urbano.

Estacionou o carro, desceram. Quando ficavam em pé, a diferença entre ele e Leandro se ressaltava: este era alto, esbelto e negro, seus olhos expressivos pareciam absorver o movimento dançante das chamas adiante com uma ambição de criatura ávida por viver a vida, por se aventurar. Já Otávio por muito pouco não chegava a marca dos um metro e setenta, seus olhos denotavam uma experiência desprovida de ímpeto, sua brancura plácida provava a ausência de qualquer rotina fora do trabalho, contudo, sua feição era de criatura difícil de derrubar, impunha respeito na sua simplicidade militar.

Posicionaram-se na barragem, a observar a infinidade obscura que ia além dela, silenciosa e misteriosa, por que estariam fazendo uma barricada em plena Rio Branco, com tanque de guerra e tudo? Mais essa agora. Silêncio... foi a única coisa a pairar no ar por longos minutos... Em seguida gotas fartas e gélidas de chuva começaram a despencar, até então de forma dispersa, elas vinham acompanhadas de uma lufada de vento frio do litoral.

E de repente, um tremor quebrou a paz. Vibrações vindas do solo se propagavam inquietantemente, os retrovisores dos veículos tremiam, parecia um terremoto... Os soldados se punham a destravar seus rifles, para quê? O que estava acontecendo? Otávio olhava ao redor procurando alguma certeza, pôde ver Leandro se esconder atrás da viatura. E de repente aconteceu, e ele quase gritou quando aconteceu. Um berro animalesco. Subitamente uma sombra circular e negra cortou o ar, voando a alta velocidade. Foi num piscar.

E no momento seguinte a sombra circular estava alocada na cabeça de um dos soldados, dividindo-a em duas da boca para cima. 

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