Quis custodiet ipsos custodes?

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Otávio Albraz


Hospital Jorge Aguiar, maio de 2019.

Seis horas. Haviam se passado seis horas. Agora os raios solares não se reduziam a traços harmônicos e amenos, entrando suavemente pelas frestas, não. Eram os raios grotescos e escaldantes do meio dia, implacáveis, Apolo parecia exigir o suor dos mortais como prece, e como ele exigia!

Pouco havia dormido nesse período, a madrugada agitada e o nascimento do filho do Leandro usurparam-lhe qualquer descanso, além é claro, do medo e da insegurança. Sentia desconfiança e temor advindo de tantas direções e situações diferentes que nem sabia mais como descrever a altíssima inquietação desconfortante que sentiu nos momentos em que não celebrava o nascimento de Bernardo.

Os militares, o que faziam na UTI que ninguém poderia ver? Tenente Bezoa parecia um homem instável demais e com poder demais. Já o capitão parecia articulado demais, sorrateiro, o que talvez fosse pior. A civil que ele resgatou lá embaixo, Beatriz, como foi baleada? Por que tanta audácia com os oficiais? Dr. Elterstein, quem seria? Nunca ouvira falar de um médico com esse nome no Rio, e pelo que entendeu devia estar na UTI. Essas e outras dúvidas pairaram sobre Otávio durante toda a manhã, os rugidos e rastejos dos pestilentos na rua eram audíveis mesmo do primeiro andar — COMO DORMIR ASSIM!?... — gritava mentalmente.

E o pior não era isso, o pior era ter de fingir placidez e segurança para sua esposa Marta, e para Liara, a criatura que mais amava e que tinha apenas oito anos. Havia de fingir isso para todos os demais, pois a farda que vestia não dava margem à fraqueza, todos aqueles desesperados esparramados pelo corredor e pelos leitos depositavam a confiança nele, na sua corporação, era ele a personificação da ordem e segurança. E via seu amigo tendo de imitar o comportamento em meio ao êxtase de pai: Ser o porto seguro para o filho, e para Jackeline, e para todos os demais. Se qualquer um ali tivesse vislumbrado o que ambos enfrentaram, as hordas para as quais ambos tiveram de apontar as armas e disparar uma, duas, três... cem vezes. Hordas animalescas e infernais... Se qualquer um houvesse vislumbrado isso, nem a presença de toda a policia militar aplacaria o pavor desse um infortunado.

E isso levava à Máxima das Dúvidas, o Porquê-Mor: Por que isso estava acontecendo? Teria Deus se cansado? Não podia haver de ser... Se fosse o caso, Ele não permitiria o nascimento de um inocente como Bernardo, o filhinho de Leandro, não permitiria que mais nenhuma alma inocente surgisse na Terra para vivenciar isso... Ou Liara. Se fosse esse o inferno, algo tão puro como Liara já havia de ter sido arrebatada, pois ao inferno um anjo não poderia pertencer...

Quando deu por si havia finalmente cochilado no ato de refletir sobre as próprias reflexões... O caos supremo parecia infligir reflexões profundas nele, um homem tão simples. Não soube dizer quanto tempo dormiu, mas acordou com uma gargalhada espalhafatosa e gutural.

Era o médico que fez o parto de Jackeline, Dr. Tobias Aguiar, um homem grande e largo, impossível de não ser notado também devido à personalidade, igualmente espalhafatosa.

Parecia estar rindo sozinho de uma piada que contou ao filho, o garoto-médico, André. O filho visivelmente constrangido com tanto escândalo apenas observava contido e vermelho os demais no corredor olhando para o pai, sendo acordados ou retirados de atividades e conversas monótonas, sussurradas... silenciosos e escondidos. Otávio não pôde se conter.

—Doutor! — Chamou a atenção e depois gesticulou silêncio com o dedo na boca, apontando a seguir na direção da janela, na direção da rua, na direção de todos aqueles lá embaixo... Aqueles que eram a causa da necessidade de silêncio.

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