Inferno Chuvoso

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Otávio

Rio, na madrugada que cheirava a pólvora e sangue.

O som confortante de chuva do lado de fora com o do limpa-para-brisas da viatura era irrelevante agora, só era possível notar a atmosfera gélida e taciturna daquela noite, abraçada pela escuridão e névoas. A chuva estava amena agora. Leandro estava no banco do passageiro, seu olhar atento às janelas do carro como se esperasse que a qualquer segundo algo terrível emergisse daquelas névoas tormentosas.

Tinham abandonado a barricada. Otávio refletia sobre isso com pungência, teria feito o certo? Quando aquelas pessoas, ou seja lá o que fossem começavam a tomar completamente o bloqueio, aconteceu tudo tão rápido...Era difícil enxergar propriamente na chuva grossa, mas seus vultos eram velozes e inconfundíveis, vultos de seres destemidos, que não hesitam frente a um fuzil ou mesmo a um canhão.Vinham de todos os lados, os gritos grasnados de guerra se tornavam com o passar dos minutos gritos suplicantes de ajuda, gritos de gente morrendo, ou melhor, sendo chacinada. Em determinado momento ele chamara Leandro para viatura, dera marcha ré e evadido por pouco. Os mendigos de aspecto tenebroso próximos dali se juntaram a chacina, agora faziam companhia no tumulo junto aos soldados. Otávio poderia jurar que viu um grupo de lunáticos comendo um homem vivo, canibalismo... Pensou com infelicidade.

Sim. Tinha feito o certo, concluiu quando se lembrou de Liara, sua filha. Fizera o certo, por Deus... Nem sabia como estava sua família em meio àquele caos, não tinha dúvidas, se falhar com a cidade era o preço para proteger sua família, assim seria. Além do que, seria morte certa manter a posição na Avenida Rio Branco. Mas teria sido apenas a sua família que pretendera salvar? Uma vozinha interna indagava... Covarde... cidadãos inocentes vão morrer por sua falha, não agiu como policial...

—Otávio... — começou seu parceiro.

O rádio interrompeu Leandro, que parecia bem, os cortes no seu tronco não eram tão profundos. Mas não o rádio da polícia, e sim o do carro.

"Estamos recebendo a informação de que algo grave está acontecendo na Rio Branco. Estamos conectados com equipes áreas agora que logo passarão os detalhes. Testemunhas informam que aconteceu uma invasão e que as pessoas estão se matando nas ruas...Aos montes. Aqui temos..."

Alguns segundos de silêncio do locutor. Era possível ouvir o som de helicópteros lancinando aquele céu negro e chuvoso. Era incomum uma chuva assim na antiga capital, mais incomum ainda que helicópteros escolhessem voar naquele vento litorâneo.

"Bem, temos recebido vídeos e fotos de alguns moradores próximos... as imagens, e-elas... perturbam. Mas podemos afirmar com certeza que houve um morticínio na região, voltaremos no assunto com mais informações assim que nossa correspondência aérea fizer contato".

Leandro desliga o rádio.

E o celular dele começa a tocar quase que em protesto.

—Alô amor, por que você não atendia? — Indagava com um tom preocupado que não combinava com ele — Ah... Verdade? Amor, onde você... Sim... já tô indo para aí.

Leandro desliga o dispositivo e começa a respirar com êxtase, arfando.

—Que foi, Leo? — Otávio já queria se informar.

—A Jackeline, ela... O bebê tá nascendo. — Pôs a mão na boca, era difícil ler o que ele estava sentindo, mas seja o que fosse, era intenso.

—Err... onde? Para-parabéns parceiro... Você é pai — Deu uma risada — Você é pai!

—Sim, eu sou! — Ria segurando o choro. — Ela disse que estava no Hospital Jorge Aguiar.

—Estamos quase em casa, vou pegar as meninas e seguimos pra lá, pode ser?

—Sim, sim, eu não te faria dar a volta agora, já estamos na Santa Teresa.

Otávio chegava a sua residência, era modesta, mas com um muro tranquilizador, coroado de cacos de vidro.

Entrou em casa com Leandro, encontrou Liara no colo de Marta, sua esposa. Estavam no sofá da sala numa penumbra iluminada apenas pelo noticiário da TV, onde imagens pouco nítidas em meio à chuva e escuridão mostravam multidões de vultos gritando e quebrando tudo na madrugada, focos de incêndio se alastravam como fagulhas no carvão queimado.

—Mô?

Marta se virou para Otávio, e sua filha foi correndo abraça-lo, ela parecia assustada, na verdade, as duas pareciam, mas Otávio não reparou muito em Marta.Estava na meia idade, assim como o marido, tinha sobrepeso e uma face redonda e áspera, com longos fios loiros e anormalmente lisos e padronizados, ornamentando cada lado do rosto rechonchudo.

—Não pode deixar ela assistir coisas assim na TV. — Disse com amargura depois de um abraço apertado na filha — Vamos pro Jorge Aguiar, o filho do Leandro tá nascendo.

—E nós temos que ir por...

—Porque não tá seguro lá fora pra ficarmos separados assim. Pega as malas e coloca tudo de importante, tamo saindo desse inferno. 

—Parceiro, já disse que deixamos o sexo como surpresa pra agora, pera, vocês vão sair da cidade? — quis saber Leandro.

—Você viu aquilo? Olha pra TV! — Apontou a mão pra notícia macabra, onde imagens de hordas infindáveis se moviam pelas ruas do Rio como uma correnteza de um rio negro e mortal, como formigas escalando carros e postes, construções, dava pra ver as bocas deles se movendo obscenamente, dava pra reviver os gritos guturais daquelas coisas só de vê-las mexendo os lábios selvagemente. —Só vou te acompanhar pra ver a Jackeline antes.

Leandro pareceu compreender, pareceu tentar compreender ainda a nova responsabilidade que enfrentava... Seu olhar já era de um pai preocupado.

Liara abraçava a cintura de Otávio como uma cria amedrontada.

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