A Guerreira

47 9 8
                                    

Beatriz

Hospital Jorge Aguiar, maio de 2019.

Ela estava cochilando quando começou, acordou assustada e fraca com o barulho dos tiros, quando fora a última vez que comeu? Tentou se arrastar dolorosamente na cama hospitalar, cada suspiro parecia causar ondas de dor na barriga e lombar. Mas a constância dos disparos a obrigou. Se jogou da cama com alguns eletrodos ainda pregados em seu corpo, a dor foi tanta quando caiu que gritou alto, assim que a dor permitiu, arrastou-se para baixo daquela cama e tapou os ouvidos. O ferimento voltara a sangrar por baixo das bandagens.

**

Mas agora que os tiros cessaram o sangue já estava secando, foram quase quinze minutos de pavor ouvindo as pessoas gritando, mas sem certeza do que estava acontecendo. Ouviu vozes masculinas, pareciam planejar o que fazer a seguir, algo sobre proteger a entrada, não pensou duas vezes.

— SOCORRO! — chamou num guincho sofrido e sentindo uma dor assustadora na lombar, como se alguém a estivesse puxando por dentro.

Por alguns instantes, silêncio. Se preparava para chamar de novo quando a porta do quarto foi escancarada. Debaixo da cama só podia ver as botas e a calça. Era um policial, como esperava. Acontecimentos com alguns familiares e conhecidos não faziam dela uma grande simpatizante deles. Tinha em sua cabeça que eram em maioria homens autoritários e despreparados, além de corruptos. Mas pelo que pôde ouvir, as coisas tinham saído do Morro. E sendo assim, não era de todo ruim ter alguém armado por perto.

—Aqui... — Grunhiu tentando se arrastar para a luz.

—A senhora se feriu? — Disse o policial em um tom calmo enquanto a ajudava a sair dali

Era um homem de meia idade, branco e barrigudinho, com cabelos curtos e barba feita, olhos coroados com uma testa imponente, um típico militar, exceto que sua farda estava hediondamente manchada. Ela lhe respondeu quando já estava sentada no azulejo, recostada na parede e ele ajoelhado a sua frente.

—Não, pelo menos não agora — Riu sem humor apalpando os curativos no abdômen. — O que tá rolando? Eles chegaram?

O homem, nomeado pela farda como Albraz a encarou por alguns momentos, quase com curiosidade, por fim disse:

—Sim. Você... você sabe o que eles têm de errado?

Beatriz começou a mexer idiossincraticamente em um de seus cachos enquanto as imagens começavam a ressurgir no olho de sua mente.

—Tudo.

Ela deve ter demonstrado seu abalo porque Albraz respondeu num tom muito calmo e confortante:

—Está tudo bem, você vai ficar bem, viu? Seja o que for que aconteceu, já passou e a gente não vai deixar nada de ruim acontecer — Colocou uma mão no ombro dela — Agora eu vou te ajudar a ir lá pra cima, junto aos outros.

Era nítido que o soldado não estava tão calmo quanto seu tom tranquilizador fazia aparentar, ainda mais com seu rosto coberto por uma crosta de sangue seco e sujeira, como se tivesse saído de uma guerra, mas ainda assim se sentiu mais segura. Depois de tudo que passou era tão incomum conversar com alguém sem sentir medo.

—Obrigada... — Deu uma nova olhadela na farda dele — ...Albraz.

—Pode me chamar de Otávio, Otávio Albraz. Consegue andar? — Otávio percebeu a incerteza no olhar de Beatriz e ofereceu o ombro como apoio.

O "apoio" dela estava suado e fedia a sangue, mas mesmo assim era uma pessoa. Não estou sozinha, pensou taciturnamente.

Quando estavam no portal ele sussurrou "Feche os olhos". Ela obedeceu. Se fosse a Beatriz de duas semanas atrás não iria fechá-los, iria encarar a cena que a aguardava seja qual fosse. Mas nessas duas semanas ela vira cenas perturbantes em demasia para uma vida só.

Pátria VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora