Franca Fraternidade

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Raeno

São Paulo, Apartamento 71 do VarinResid

Tinha sido uma madrugada chuvosa, seguida de um alvorecer pálido, frio e silencioso, o que era bem típico da Grande São Paulo, tirando é claro a parte do silêncio... Ah sim, a aquietação generalizada da cidade foi uma das boas consequências daquele... Armagedom. Sim, poderia chamar assim, pensou. Mesmo não acreditando na bíblia, o nome parecia ideal. Aliás, às vezes ria das passagens bíblicas e de seus seguidores, era de fato muito engraçado, o quanto as pessoas são facilmente enganadas, idiotizadas. Na verdade, todas as pessoas pareciam tolas de alguma forma. Religião, política, vícios e egos inflados... Os porcos sempre dão um jeito de se sujar, não importa o tipo de lama.

Pensava essas coisas enquanto se barbeava. Ver seu reflexo no espelho o fez lembrar-se de outra coisa pela quais inúmeros idiotas eram enganados: A aparência. Sorriu.

—Irmão? — Uma voz miúda seguida de batidas na porta do banheiro o fez se cortar.

—Sim, irmãzinha? Precisa de algo? — Entoou num tom gentilíssimo, mas sentindo raiva daquela dor na bochecha e limpando os fios de sangue que brotavam numa toalha.

—Err... Eu só queria avisar que já estou indo... Fazer as compras na padaria...

—Esplêndido!

Essa tentativa cômica de averiguar se ele havia mudado de ideia o divertiu. Na noite anterior ela havia passado dos limites, então, ficou resolvido que ela deveria pegar suprimentos na padeira em frente, sozinha. Esperou o barulho da porta de saída do apartamento se batendo para sair do banheiro e rapidamente vestir um agasalho branquinho, branco sempre foi sua cor favorita, a cor da neve... Neve de Paris, do Canadá... Refletia enquanto posicionava uma cadeira na varanda de sua residência, que, fortuitamente, dava uma visão de frente para a padaria e toda a rua lá em baixo. Eram quase vinte andares. Olhou para alguns quadros posicionados na lustrosa sala do chá que antecedia a varanda, quadros dele visitando a França e alguns outros países. Como estariam esses lugares, agora? Perguntou-se olhando pra Torre Eiffel. Deveria ter ficado por lá, seja como for, de certo está melhor do que aqui, nesse fosso.

A cidade começou a sucumbir há alguns meses. As hordas de crackudos nojentos foram aumentando, ficando cada vez mais agressivas. Invadiam casas, se juntavam em bolos humanos para conseguir pular os muros das residências, era horrível ver aquilo acontecendo. Ah sim, a melhor parte foi o governo municipal tentando disfarçar um problema de tamanha obviedade, e a cereja do bolo foi a população. Sim, a multidão de porcos. Resolveram que o ideal seria protestar queimando ônibus e delegacias, ora, se quisessem mesmo ser úteis deveriam ter ateado fogo nas cracolândias. O resultado foi isso, uma São Paulo totalmente silenciosa, após uma semana de barulhos infernais de caos urbano, e claro, a maioria sucumbiu a essa nova epidemia. Agora as pessoas se comiam, literalmente. Lembrou uma frase de Hobbes, "O homem é o lobo do homem". Riu alto com o sentido inovador que essa citação adquiria.

Logo ficou quieto, se lembrou de que a maioria de seus vizinhos estava doente também, perambulando pelos corredores do prédio... Ah, Ariele... Torceu para que ela não fosse estúpida o bastante para usar as escadarias, sendo que o elevador ainda funciona com o gerador de emergência exclusivo dele. Se fosse assim tão estúpida talvez merecesse mesmo morrer.

Já acomodado na espaçosa varanda, encarou o alvorecer à sua frente, majestoso e pálido. A luz por alguma razão parecia diminuir a atividade daquelas bestas, o que era intrigante já que o olho humano enxerga melhor durante o dia. Avistou um vulto lá embaixo, andando desengonçadamente e com presa. Estava com um casaco amarelo — Ela não pode ser minha irmã — A cor amarela é a que o humano vê primeiro, mais chama atenção, e pior: Era difícil dizer pela distância, mas ela parecia estar com MounMoun nos ombros, aquele gato gordo o lembrava de Garfield, sempre odiou esse desenho, a preguiça daquele personagem lhe dava nos nervos. Pelo menos havia parado de chover, pois ela realmente enfrentaria problemas se fosse tentar carregar um gato na chuva. Entrou na padaria depois de uma caminhada patética, ela parecia estar de salto. Franziu a testa enquanto a apoiava na mão, num gesto de pura decepção.

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