Banho de Mar

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Beatriz


Ruela próxima ao Morro da Providência, Rio, 2019.

Não fosse o apoquento que a chuva vinha lhe causando, talvez tivesse dormido, finalmente desistido. Mas não, a chuva insistia em perturbá-la com seu gelo, com seu toque, a lembrando que se desistisse, nunca mais voltaria a experimentar tais sensações.

Determinou-se a arrastar-se beco adentro, não ousaria retornar para a rua de onde seus agressores seguiam caminho, teve sorte de não terem feito outras coisas com ela. O chão era  áspero e negro ao toque das suas mãos, as sujeiras profanas de uma ruela urbana malcuidada começavam a escorrer na medida em que a chuva tornava-se mais poderosa e levava os dejetos bueiro a baixo. Mal enxergava onde estava pondo a mão, menos mal. A única luz a sua frente era o outro lado do beco, seu objetivo.

Foram longos dez metros de rastejamento. A dor no abdômen, onde o disparo a transpassou era pior do que cólica e vinha em pontadas, sendo agravada pelo movimento abdominal que fazia ao se arrastar, tentava então usar quase que exclusivamente a força dos braços para executar aquele movimento desesperado de quem se apega aos últimos fios de vida, mas, perto do fim os braços já apresentavam cãibras e dores para acompanhar as da barriga. Por vezes parecia que perdia a lucidez e que sonhava acordada. A chuva já não aparentava ser agora tão inconveniente ou despertadora, na verdade, tinha um toque frio e aconchegante, convidando-a a se entregar ao vazio.

Nada disso. Dizia a si mesma, os horrores que testemunhou na sua comunidade a fizeram enxergar a morte com outros olhos, com um medo diferente. O medo lúgubre que a afligia não era produto simplesmente da perspectiva da morte, do fim. Era o medo de morrer e retornar.

Havia alcançado a calçada da outra rua, mas e agora? O que isso mudava? A maior esperança era de alguém vê-la, mas em meio aquela chuva turbulenta e ofuscante isso seria quase um milagre. Voltou seu corpo para uma das casas muradas da calçada. Sentiu-se como um verme rastejante chafurdando na sujeira carioca com o ímpeto único de viver. Faltando poucos impulsos para chegar ao portão sua visão foi ofuscada por uma luz que não provinha de postes de iluminação, vinha na horizontal e se movia: Um carro estava parando ao lado da calçada. Alguém a viu, estaria ela salva?

O que viu e sentiu a seguir quase não se mantinha muito nítido em sua memória, exceto o vislumbre que teve quando o estranho a levava para o carro: Do rastro de sangue se esvaindo na chuva que deixara no seu percurso, como uma lesma macabra. A cidade vista pela janela do veículo... Tão escura e morta, ah... O que tinha acontecido à saúde de sua cidade? Seu pai costumava dizer que quando os homens ficavam muito sujos e terríveis, o mar se inquietava e dava um banho na Cidade Maravilhosa com uma chuva torrencial, uma chuva como aquela... Seria ela o suficiente para purgar a região daquela podridão? Livrá-la de toda aquela imundice que presenciou? Sentiu frio...

**

Bip... Bip... —As linhas no monitor dançavam ao som desses bips. Estava agora aquecida, sob cobertores, sonolenta e aconchegada. Garganta seca. Tentou se sentar no que parecia ser uma cama hospitalar, mas a dor na lombar e na barriga junta aos beliscos dos eletrodos em sua mão a desencorajaram. Estava num quarto de uma só cama, com paredes azuis desbotadas ornamentadas em madeira escura, uma janelinha de ferro cerrada para a madrugada, havia também mesinhas metálicas com medicamentos, seringas e outros materiais de apoio.

—Vejo que acordou — Disse um homem saindo de um canto do quarto, ela o reconheceu imediatamente como o estranho que a resgatou, se recordava de alguns momentos da viagem agora... O ar condicionado congelante, o painel chique do carro, a camisa social elegante do homem... Suas feições, o nariz que a ela parecia um nariz suíno misturado com o de uma fuinha, engraçado e aprumado entre as hastes metálicas do óculos cafona.

—Pois é!

—Como a senhora está se sentindo?

Ele deveria ter seus vinte e poucos anos, achou desnecessário o "senhora".

—Dói.

—Sim, eu estava vindo checar seu estado e ministrar um remédio que vai te ajudar a dormir — Disse fitando a bolsa de soro que estava ligada ao braço dela por uma agulha.

—Não precisa senhor, já dormi demais.

—Pelo menos coma alguma coisa — Disse com um ar incerto, reparando nas olheiras dela e em sua pele empalidecida-amarelada, parecia mal nutrida.

Ela anuiu com a cabeça. —Quando vou ter alta?

—Difícil dizer, a bala entrou e saiu, por sorte não sofreu maiores danos, só que você perdeu muito sangue e alguns tecidos foram danificados... Mas já arrumei isso, porque o doutor Tobias está num parto agora e estamos sem pessoal. Mas não se preocupe, eu também sou médico — Retratou ao perceber certo espanto nas feições da jovem e deu um sorriso tímido — Vou man...

Foi interrompido por um grito desesperado, parecia feminino, mas com uma voz rouca e terrível aparentemente vindo dos corredores do hospital.

—... Mandar trazer a comida, por hora descanse.

Dito isso saiu apressado do quarto, falhando em disfarçar sua perturbação.

Sentiu um medo que nem o conforto daquela cama poderia apaziguar. Medo do grito, aquele maldito grito que se assemelhava tanto aos daqueles que escutou nas suas últimas semanas no Morro.


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