Ultraje

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Beatriz


Próximo ao Morro da Providência, Rio de Janeiro, na mesma noite do Ônibus infernal.

Correr... Correr... Escapar... Era o único pensamento dela, enquanto se mantinha a uns dez metros dos seus perseguidores. Depois de tudo que passou, não poderia permitir que acabasse assim, num assalto qualquer.

Eram dois homens de tamanho considerável, a perseguiam com afinco, os revolveres em mãos, cada qual portando um.

A sua frente podia ver o acesso a uma viela que conhecia, se virasse nela teria alguma chance, sairia da mira. Já atiraram duas vezes, dois erros, dera sorte, dera sorte de haver carros estacionados na calçada impedindo uma mira limpa entre ela e os dois. Cerca de vinte metros agora, e chegaria à viela, era só continuar, mais rápido... Não podia se dar ao luxo de ficar sem ar, era sua vida dependendo dela ali.Sentia a cabeça começando a martelar, poderiam ser várias as causas... O barulho dos tiros tão próximos, o medo, o pior que já passara, ou até mesmo já podia ter sido atingida e nem notado... Já vira algo assim em livros.

Suas pernas curtas não ajudavam, mas proporcionam-se a sua altura, mesmo para dezessete anos era baixa. Seus longos e espessos cachos cor de mel ululavam as suas costas conforme avançava, obstinada, mas longe de ser destemida, atrás dela, homens impiedosos buscando vingança, vingança pelo ultraje de uma vitima de assalto ter fugido.

Cinco metros...Agora só precisava dar alguns passos e virar à direita. Os carros estacionados na sua esquerda tinham um aspecto escuro naquela noite silenciosa, refletiam seu vulto veloz passando pelos vidros, Beatriz percebia esses detalhes com os cantos dos olhos, seus sentidos aguçados com a adrenalina, era estranho, percebia outros detalhes, tantos detalhes em meio ao desespero. De repente um barulho imponente e rápido ressoou na rua, o som do tiro a fez arregalar os olhos e sentir algo semelhante a quando se pisa no nada, o susto breve antes do pé encontrar o chão num desnível qualquer.Seus olhos de mel arregalados de terror receberam poeira. Poeira vinda do impacto da bala na parede a sua direita, concreto em pó entrou no seu olho e machucou. Contudo ela tinha conseguido, faltavam só uns dois passos e haviam errado pela terceira vez, se permitiu ficar grata, afinal, viveria.

Um quarto disparo ecoa, e dessa vez o som não é o que a amedronta mais, e sim a sensação da bala perfurando suas costas e abdômen. Sua lucidez se liquefez por um segundo e no próximo momento estava estirada no chão, em curva na viela, metade do corpo nas sombras que abrangiam o beco e as pernas na calçada. Ela nem sentiu o impacto do chão. Mas sentia a pressão que seu corpo fazia nele agora, e algo cálido e morno se espalhado abaixo dela, a envolvendo de vermelho-negro, primeiro a barriga, a pélvis, e por fim os seios e braços. Mal se moveu quando ouviu os passos dos perseguidores atrás dela, era possível sentir o peso de seus olhares.

Ouviu eles se afastando, e então a primeira pontada de dor realmente insuportável a atingiu, suprimindo a alegria que quase sentiu quando eles foram embora a dando por morta. Depois de tudo que passara...

As partículas no seu olho direito paravam de incomodar à medida que suas lágrimas saiam e mesclavam-se ao suor e as suas feições morenas torcidas de dor, medo e raiva.

Uma chuva gelada e negra começava, como se os céus já antecipassem o seu luto.

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