Capítulo II

106 37 361
                                    

Fui para a prisão com méritos! O julgamento não havia sido tão ruim. O guardinha foi condecorado. A cela mais fria é expressão usual. Conforme descobri, todas eram frias, posto que a prisão possuía grossas paredes de pedra, com pouca ventilação e um cheiro doméstico de excremento.

Lá, fiz algumas amizades, o que imagino ter sido meu pior erro. No sentido bom e no ruim. Isso ficou muito mal colocado, mas, no decorrer de minha história, explicarei melhor.

Não sou bom de briga e o ânimo dos caras na prisão era sempre exaltado. Não os culparia se um dia viesse a provar a sopa de cebolas que nos era servida todos os dias. Sempre que alguém começava uma briga, ela tornava-se generalizada. Com minhas habilidades furtivas, escalava o muro e ficava vendo tudo do alto, até que perceberam e começaram a impedir-me. Era nessas horas que o Tormento chegava e libertava-me para que pudesse continuar a escalada.

Tormento é como o chamam. Imagino que isso deve ser em razão de sua voz gutural, tatuagens assombrosas, o nariz quebrado em várias brigas e sua corpulência... Mas, era um dos caras mais sensíveis que já conheci. Vivia com uma pequena gaita no bolso, pequena demais para suas grandes mãos, e, à noite, costumava tocar uma cantiga que os homens do mar cantavam para seus filhos. Vim a conhecer a letra quando mudei-me para Neata, uma vila a beira mar bem tranquila:

Dorme onde o mar canta

O canto da onda litorânea,

Poseidon marca o compasso

E o seu impulso nos guarda

Seguros na barca a repousar.

A rede lançarei ao amanhecer.

O golfinho saúda ao longe

O barquinho de papel na alvorada.

Era a favorita do meu filho mais novo. Tinha o mesmo nome de um outro homem que conheci na prisão: Hélio. Meu menino era um doce. O cara da prisão era um maluco. Em seus momentos bons, era inteligente e preparado para resolver e melhorar as coisas mais simples do cotidiano. Era do mundo das ideias.

Em seus dias maus... roía as unhas até o sangue jorrar, andando de um lado para o outro e falando coisas desconexas. Eu e Tormento o mantínhamos isolado e amarrado nas horas livres após o trabalho forçado, única ocasião em que saíamos das celas. Por vezes, os dirigentes estavam de bom humor e deixavam um tempo de lazer para depois do labor.

Esses eram os momentos mais perigosos para Hélio. O ócio é o pior conselheiro para os homens instáveis. Então, suas palavras desconexas encontravam ouvintes impacientes, que respondiam com violência.

Da última vez que conseguiu escapar dos nós, a pancada o deixou desacordado por quase um dia inteiro. Depois, descobriram que um osso do braço havia se partido. Tentamos unir e mobilizar. Cicatrizou, mas ficou um pouco torto, afinal, nem eu nem Tormento éramos médicos. Segundo ouvimos, a família havia deixado Hélio naquela prisão.

No início, ter um filho "mensageiro dos deuses" era interessante, pois assim eram vistos os loucos. Até que os deuses ficaram violentos e os membros da eminente família cansaram-se de seus ataques. Quase chegou ao ponto de matar uma prima. Naqueles dias, caminhava entre nós como o louco que era, entretanto, encontrou oponentes muito mais fortes. Para mim, ele era a prova de que a miséria e a mala fortuna atingem até os de melhor formação.

Em alguns dias bons, ele me sorria de sua cela, logo à minha frente, quando Tormento tocava sua gaita. Olhava-o e ficava triste, pois sua privação era perpétua. Quando cheguei, ele lá estava e sabia que quando eu partisse, lá continuaria. O nome do meu filho foi uma forma simbólica de conceder-lhe a liberdade.

Fragmentos da vida de um pescador (Conto)Where stories live. Discover now