Capítulo III

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Andrea era o condenado mais temido. Indispor-me com ele foi apenas mais uma das minhas burrices. Andrea era o algoz mais frequente de quase todos os habitantes daquela nobre localidade. O único que ele nunca encarou foi Tormento. Não sei se contei antes, ele foi soldado, só que quando saiu da guerra, a guerra não saiu dele. Era frequente causar tumultos nas tavernas todas as noites e numa delas, assassinou o filho de um aristocrata. Até o ponto em que apenas miseráveis eram feridos, quase tudo era tolerado e ninguém era punido.

Certa vez, Andrea tomou coragem. Depois de um dia de trabalhos forçados, estavam todos conversando animadamente e fazendo apostas que teoricamente eram proibidas. Tormento mostrou-nos um cantil de cerveja, um artigo cobiçado na prisão. Andrea também o viu e seus asseclas o instigaram a tomá-lo. E o fez diplomaticamente, tanto quanto o mais indiscreto dos políticos.

Furioso, Tormento lançou-lhe o olhar "tem certeza disso?!", que faria qualquer um correr. Exceto aquele demente. Eis que ocorreu o estouro de guerra. Sem qualquer alarme, escalei o muro para afastar-me de tudo. Sim, eu poderia escapar por ele, se do outro lado não houvesse um abismo.

Esperei a poeira baixar. Estava demorando mais do que o normal. Hélio jazia desacordado a um canto, como vários outros homens. Mas, Andrea agredia Tormento selvagemente. Força é uma coisa, técnica é outra. E esta, meu amigo não tinha. Andrea o mataria e ninguém faria nada.

Desci do muro, uma das piores decisões que poderia tomar. Encontrei uma grande pedra, peguei-a e corri em sua direção, gritando desabalado. Meu grito foi abafado pelo barulho do confronto. Pulei nas costas de Andrea e acertei-lhe a cabeça. Segundos depois, estávamos no chão, minha perna presa sobre seu corpo desacordado.

Se os deuses ajudassem, eu o teria matado com aquele golpe. Mas, é claro, os deuses não ajudam. Sabia que seria perseguido. Sabia que, provavelmente, nunca mais na vida veria Tormento e Hélio. O que busca vingança é incansável. Uma ou outra zombaria, ele perdoava. Só que quando o agredi pra valer e o desmoralizei pela força bruta, assinei o meu destino.

 Só que quando o agredi pra valer e o desmoralizei pela força bruta, assinei o meu destino

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Faltava muito pouco para terminar de cumprir a pena. E os dias que faltavam foram gradativamente piorando. As horas de trabalho eram as mais tranquilas, embora fossem as mais desgastantes. Depois da última briga, em que a maioria dos homens foi ferida, não tivemos momentos de distração, o que foi pior para mim. Se Andrea não tivesse um campo aberto para executar a sua vingança com os punhos, do que ele seria capaz? A resposta não tardou.

Um velho imundo, com a aparência do mais condenado dos homens, que distribuía as nossas refeições, errou as tigelas, e o meu vizinho de cela acabou amanhecendo morto. Era só um rapaz que sairia antes de mim...

O acontecido afetou meus nervos de tal forma, que passei a desconfiar demais. Comecei por perder alguns quilos. Estava mais fraco e o trabalho forçado não rendia como antes. Hélio comia uma parte de sua sopa de cebolas e empurrava-me o restante, enquanto a minha permanecia intocada.

Fragmentos da vida de um pescador (Conto)Where stories live. Discover now