Capítulo VIII

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Sou um homem que não pode reclamar da vida. Embora pareça que tudo aquilo que amei me foi tirado, fui capaz de me reerguer mais vezes do que posso contar. No fundo, os desastres aconteceram quando já era hora de abandonar uma situação. Primeiro foi a sombra da herança paterna. Depois, uma doação de meu trabalho em prol dos famintos que por pouco não me exauriu. Na prisão, acomodei-me ao seu dia a dia, até que tentaram envenenar-me. Mas, em Neata, não sei qual foi o meu pecado.

 Mas, em Neata, não sei qual foi o meu pecado

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Caminhei e vi o sol se pôr diversas vezes. Senti frio, fome e cansaço. Deitei-me com belas mulheres, e outras, nem tanto. Tentei alguns trabalhos, mas chegar bêbado todos os dias não é o melhor conselho que lhe dou. Eram as predisposições de meu pai falando alto em mim.

Depois de uma noite de dança ao redor de uma enorme fogueira, bebida à vontade e moças espirituosas, acordei com a cabeça pesada. O barulho não parava e comecei a ficar irritado. Era um choro de bebê bem potente. Mais um pouco e ficaria surdo. Na porta da cabana e em um cesto de palha trançada, havia uma coisa bem pequena, bem embrulhada para resistir ao frio da noite. Que tipo de pessoa larga um bebê na porta do bêbado mais reconhecido da aldeia?

Tinha um bilhete. Reconheci o nome do remetente. Ele tinha uma grande gleba de terra e filhas muito belas. Pedi-lhe hospedagem, que não foi recusada. Colocou-me no celeiro, afinal, eu era um estranho. Tive comida, cobertas limpas e alguém para esquentar o leito.

Agora, a sua filha estava morta. Faleceu depois de um parto difícil. O fruto daquela noite foi-me entregue, já que o homem nem conseguia olhar para o rosto do bebê. Quem escreveu foi a filha mais velha, encarregada de dar sumiço na criança. Ninguém a queria por perto e eu fui a última possibilidade. Não foi difícil encontrar-me.

Apavorado, como nunca estive na vida, peguei o bebê. O cheiro era ruim. Precisava de banho. Não era mais que um recém-nascido. Imaginei ensiná-lo a ler, escrever e filosofar. Ensiná-lo a cavalgar, lutar com espadas, ser um bom cidadão. Claro, as coisas talvez não saíssem como fantasiei, mas nada me pegou tão desprevenido do que o fato de o bebê ser menina.

 Claro, as coisas talvez não saíssem como fantasiei, mas nada me pegou tão desprevenido do que o fato de o bebê ser menina

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Estava perdido. Agora podia admiti-lo para mim mesmo. Fui até a casa do meu patrão. A esposa dele ensinou-me a limpá-la e a molhar um tecido com leite para amamentá-la. Perguntou-me se tinha um nome, e eu sequer havia pensado nisso. Decidi-me por Mara, que no idioma hebraico significa "amarga", que é a forma com que enxergava a vida naqueles tempos.

Na primeira semana, não ingeri uma gota de cerveja. Mara chorava o tempo todo, sentia fome o tempo todo e precisava ser constantemente limpa. Enlouqueci e fui para a taverna. Deixei-a aos prantos, como estava.

Depois da sétima caneca, meu patrão apareceu afogueado e louco da vida. Ele e a esposa viram a comoção frente à minha cabana e foram averiguar. Outras pessoas da aldeia tinham ouvido seu ensurdecedor choro de bebê. Mara estava ardendo em febre. Então, eu caí no choro de novo.

Fragmentos da vida de um pescador (Conto)Where stories live. Discover now