Capítulo VI

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Visualizei uma ruína em potencial. Seu porão era espaçoso, perfeito para o que pretendia. Pedras estavam caídas por todos os lados. Precisaria de uma boa massa para recolocá-las e melhorar o aspecto do lugar.

A obra ficou rapidamente pronta. Durante esse tempo, pedi prazos aos credores. Em menos de cinco meses, testemunhas viram-me sair pelas ruas com uma bolsa que tilintava. Fui, então, assaltado e brutalmente espancado. O médico que me acorreu levou-me ao seu consultório, tratou minhas feridas, arranjou-me andrajos e apertamos as mãos. Daquele momento em diante, eu era um homem morto.

Conheci um rapaz muito doente que fazia o mesmo trabalho que eu pretendia iniciar

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Conheci um rapaz muito doente que fazia o mesmo trabalho que eu pretendia iniciar. Quando lhe mostrei o porão, seus olhos mortiços irradiaram. Acabei por adotar o seu nome: Lazarus. Dessa forma, Caio estava definitivamente morto e Lazarus continuaria vivendo.

O mesmo nome do meu nobre companheiro fez com que outros miseráveis viessem a mim pensando tratar-se dele. Tanto melhor.

Em meus anos de experiência, vi a maioria das histórias culminarem em mortes precoces. Eu podia dar-lhes alimento, mas não poderia prescrever-lhes medicamentos nem fazer com que tomassem banho, embora sempre as alertasse da importância disso. Alguns usavam a bica para se lavarem. Via roupas mal lavadas secando sobre as pedras.

Poucas crianças vi sumirem ao longo do tempo e descobri que foram adotadas. Muitas faleceram à minha porta nas madrugadas frias, sem que eu tivesse ouvido qualquer ruído, o que fazia a tristeza se aprofundar em mim por muitos dias.

Histórias em que os seus personagens conseguiam escapar à regra eram poucas. Vi dois moleques, apenas.

Um era escravo e foi para a rua depois que o velho senhor a quem servia faleceu e deixou sua liberdade em testamento. Sabia ler, escrever e fazer contas, e passava dias ouvindo filósofos falarem ou na biblioteca pública. Alguém se comoveu com a sua disciplina e inteligência e tornou-o seu pupilo. Aos 16 anos já era médico.

O outro era esperto e ágil. Tornou-se ladrão e trazia muitos alimentos para o meu porão. Eu o recriminava, ele apenas sorria. Quando dei por mim, o moleque apareceu lá para despedir-se. Estava bem vestido, dizendo que gostaria de viajar. Juntou-se a uma caravana para trabalhar e um dia viria a tornar-se dono de muitas delas. Casos esparsos.

Quando dei por mim, os anos passaram, ninguém mais perguntou por Caio, os credores não tinham esperança de receber e eu adoeci

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Quando dei por mim, os anos passaram, ninguém mais perguntou por Caio, os credores não tinham esperança de receber e eu adoeci. Fiquei deitado por quase duas semanas, sem que houvesse uma pessoa sequer para trocar a palha e os cobertores urinados e úmidos pelo suor febril.

As crianças iam até o porão, já que a porta permanecia aberta, viam que não havia comida e simplesmente iam embora. Algumas se revoltaram e destruíram coisas. Quando ouvi aquilo, não acreditei, não reagi, apenas chorei.

Como que por milagre, apareceu em meu quarto uma menina franzina, de cabelos crespos e pele como o ébano. Delirante, vi-a tocar em meu odre que estava sem água. Sem uma palavra, ela encheu-o. Claro que não haveriam palavras, ela era muda. Olhei com gratidão em seus olhos e surpreendi-me com a sua profundidade. Eram da cor do mel.

Poucas vezes ela aparecia no porão, e sempre estava machucada. Talvez fosse uma escrava, vinda do outro continente. Com uma vassoura de galhos apanhados no mato, ela pôs-se a varrer o cômodo. Abriu a cortina esfarrapada e deixou a luz entrar.

Eu preferia o escuro, pois o sol traz otimismo, traz a sensação de que você tem a obrigação de sentir-se melhor. O breu deixa a tristeza ser completa, profunda, palpável. A escuridão parece intensificar nossas sensações de medo e desolação. Arrastei-me até o outro canto do quarto e ela juntou toda a palha velha. Colocou uma nova e limpa.

Não sem uma pontada de pânico, percebi que ela vinha com um recipiente de água fervida e despejava em uma bacia. Ela olhou-me com severidade, tal qual uma mãe que repreende o filho. Não era eu que incitava as crianças a tomarem banho, falando da importância de manterem-se limpas? A menina saiu do quarto, deixando roupas limpas sobre a cadeira. Não se despediu, apenas se foi.

Nos três dias seguintes, encontrei pão, azeite e água ao lado de onde estava deitado. Nunca mais a vi.

Fragmentos da vida de um pescador (Conto)Where stories live. Discover now