Visualizei uma ruína em potencial. Seu porão era espaçoso, perfeito para o que pretendia. Pedras estavam caídas por todos os lados. Precisaria de uma boa massa para recolocá-las e melhorar o aspecto do lugar.
A obra ficou rapidamente pronta. Durante esse tempo, pedi prazos aos credores. Em menos de cinco meses, testemunhas viram-me sair pelas ruas com uma bolsa que tilintava. Fui, então, assaltado e brutalmente espancado. O médico que me acorreu levou-me ao seu consultório, tratou minhas feridas, arranjou-me andrajos e apertamos as mãos. Daquele momento em diante, eu era um homem morto.
Conheci um rapaz muito doente que fazia o mesmo trabalho que eu pretendia iniciar. Quando lhe mostrei o porão, seus olhos mortiços irradiaram. Acabei por adotar o seu nome: Lazarus. Dessa forma, Caio estava definitivamente morto e Lazarus continuaria vivendo.
O mesmo nome do meu nobre companheiro fez com que outros miseráveis viessem a mim pensando tratar-se dele. Tanto melhor.
Em meus anos de experiência, vi a maioria das histórias culminarem em mortes precoces. Eu podia dar-lhes alimento, mas não poderia prescrever-lhes medicamentos nem fazer com que tomassem banho, embora sempre as alertasse da importância disso. Alguns usavam a bica para se lavarem. Via roupas mal lavadas secando sobre as pedras.
Poucas crianças vi sumirem ao longo do tempo e descobri que foram adotadas. Muitas faleceram à minha porta nas madrugadas frias, sem que eu tivesse ouvido qualquer ruído, o que fazia a tristeza se aprofundar em mim por muitos dias.
Histórias em que os seus personagens conseguiam escapar à regra eram poucas. Vi dois moleques, apenas.
Um era escravo e foi para a rua depois que o velho senhor a quem servia faleceu e deixou sua liberdade em testamento. Sabia ler, escrever e fazer contas, e passava dias ouvindo filósofos falarem ou na biblioteca pública. Alguém se comoveu com a sua disciplina e inteligência e tornou-o seu pupilo. Aos 16 anos já era médico.
O outro era esperto e ágil. Tornou-se ladrão e trazia muitos alimentos para o meu porão. Eu o recriminava, ele apenas sorria. Quando dei por mim, o moleque apareceu lá para despedir-se. Estava bem vestido, dizendo que gostaria de viajar. Juntou-se a uma caravana para trabalhar e um dia viria a tornar-se dono de muitas delas. Casos esparsos.
Quando dei por mim, os anos passaram, ninguém mais perguntou por Caio, os credores não tinham esperança de receber e eu adoeci. Fiquei deitado por quase duas semanas, sem que houvesse uma pessoa sequer para trocar a palha e os cobertores urinados e úmidos pelo suor febril.
As crianças iam até o porão, já que a porta permanecia aberta, viam que não havia comida e simplesmente iam embora. Algumas se revoltaram e destruíram coisas. Quando ouvi aquilo, não acreditei, não reagi, apenas chorei.
Como que por milagre, apareceu em meu quarto uma menina franzina, de cabelos crespos e pele como o ébano. Delirante, vi-a tocar em meu odre que estava sem água. Sem uma palavra, ela encheu-o. Claro que não haveriam palavras, ela era muda. Olhei com gratidão em seus olhos e surpreendi-me com a sua profundidade. Eram da cor do mel.
Poucas vezes ela aparecia no porão, e sempre estava machucada. Talvez fosse uma escrava, vinda do outro continente. Com uma vassoura de galhos apanhados no mato, ela pôs-se a varrer o cômodo. Abriu a cortina esfarrapada e deixou a luz entrar.
Eu preferia o escuro, pois o sol traz otimismo, traz a sensação de que você tem a obrigação de sentir-se melhor. O breu deixa a tristeza ser completa, profunda, palpável. A escuridão parece intensificar nossas sensações de medo e desolação. Arrastei-me até o outro canto do quarto e ela juntou toda a palha velha. Colocou uma nova e limpa.
Não sem uma pontada de pânico, percebi que ela vinha com um recipiente de água fervida e despejava em uma bacia. Ela olhou-me com severidade, tal qual uma mãe que repreende o filho. Não era eu que incitava as crianças a tomarem banho, falando da importância de manterem-se limpas? A menina saiu do quarto, deixando roupas limpas sobre a cadeira. Não se despediu, apenas se foi.
Nos três dias seguintes, encontrei pão, azeite e água ao lado de onde estava deitado. Nunca mais a vi.
YOU ARE READING
Fragmentos da vida de um pescador (Conto)
Short StoryEsta é a história de Lazarus, um homem de bom coração, que teria vivido na Grécia antiga. Peço desculpas antecipadas, caso haja erros históricos. Esse homem era de família bastante próspera de comerciantes romanos que se mudaram para a Grécia. A for...