Dia 04 de julho de 1982

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A dor de cabeça gradativamente aumentava, assim como a velocidade com que as lembranças passavam por sua mente, cada vez mais imersivas. Ele se perdia em meio àquele emaranhado de informações de que há muito se esquecera.

Estavam em um restaurante chique. Havia reservado a mesa 19 para os dois, perfeita para um encontro importante. Da entrada, via-se uma fila repleta de casais e um segurança barrando os que não haviam feito a reserva antecipada. Dali também dava para se admirar a grandeza do restaurante e as várias mesas separadas, sempre para duas pessoas, cobertas por panos roxos, cor que também se via na fachada do estabelecimento, com velas vermelhas acesas ao centro de cada uma delas. Ao lado esquerdo da entrada, viam-se mais mesas e a entrada para a cozinha; e, a frente, lá no fundo, estavam os banheiros. Todos conversavam baixo, mas, conforme enchia, o murmurinho rapidamente era promovido a um grande coral. A mesa reservada estava ao centro.

Havia quase seis meses que Daniel comparecia às consultas da doutora Michele, e, há seis meses, esperava pela oportunidade de vê-la naquele vestido verde e longo. Não tinha alças e terminava logo acima dos seios, com o pescoço, ombros e braços nus e a calda tapava os saltos. Além disso, brincos dourados em forma de gota pesavam em suas orelhas, um batom vermelho decorava seus lábios, seu cabelo estava preso em coque, mais dourado do que nunca, um colar prata se apoiava em seu peito e uma pulseira dourada pendia da mão esquerda. Muito bem vestida para uma consulta. Ele usava uma camisa social branca com as mangas dobradas no cotovelo, deixando os braços e um relógio a mostra, cinto de couro marrom claro, calças pretas de um tecido caro, sapatos escuros e cabelos úmidos com mechas sobre a testa.

Desde o dia em que a viu pela primeira vez, não conseguia expulsar os pensamentos ligados a ela, e tudo o que fazia, fazia pensando nela. A garota se tornara seu objetivo principal e não se empenhava tanto em algo desde a universidade. Parecia estranho ver que uma mesma pessoa, em uma mesma linha temporal, poderia mudar tanto de uma hora para outra, algo que, talvez, passaria despercebido caso não fosse citado. Era irônico poder ver que, o mesmo doutor que se ajoelhava perante uma mulher, 20 anos depois, se tornaria aquele que mais criticaria o amor. Ora, não seria amar fazer de tudo para amenizar seus defeitos quando ao lado de alguém que ama?

- Bolou isso tudo sozinho? – Perguntou Michele, com um sorriso tímido no rosto.

- Bom, - o anfitrião puxou a cadeira para que ela se sentasse – quando se trata de um encontro, minha mãe nunca me deixa trabalhar sozinho.

- Isso me deixa bem surpresa. Você não mora sozinho?

- Então, - ele se sentou na outra cadeira – sobre isso eu menti.

- E sobre o "não minta para mim durante as consultas"?

- Durante as consultas. – Pausa – Achei que causaria uma boa impressão. Você sabe, eu ser um "cara independente". – Fez sinal de aspas com os dedos, mas ela pareceu não entender ao certo do que ele falava – Até hoje, todas as garotas com quem eu conversei, ou com quem já namorei, todas diziam estar à procura desse tal "cara independente" – novamente as aspas -, o que é muito relativo, já que eu posso ser independente financeiramente e não ser independente da minha família ou, no caso, da casa da minha mãe. Tá entendendo o que eu quero dizer?

- Continua.

- Com o tempo, eu acabei chegando à conclusão de que as mulheres querem um príncipe encantado, tipo o que salva a Bela Adormecida. Chamam ele de príncipe porque é filho de um rei, mas no final das contas, ele se arrisca como se fosse independente de todas as responsabilidades que acarreta ser um príncipe, cruzando a floresta de espinhos e colocando todo o resto a perder. Elas queriam alguém que fosse destemido, que vivesse no limite ou que fosse mais interessante do que eu parecia ser para elas.

- O sonho da Bela Adormecida. – Ela sorriu.

- Exato.

- Já passou pela sua cabeça que elas poderiam estar atrás de um cara que, sei lá, lutasse por elas como o príncipe lutou? Que apesar do que todo mundo fala, ou que apesar dos espinhos, façam de tudo para chegarem no topo do castelo, acordá-las com um beijo e dizerem: "pronto, agora você pode ser feliz"? – Pausa – Nem tudo é uma fórmula mágica, doutor.

- Na verdade eu sou físico, não químico. – Ficou feliz ao ouvi-la rir. – E eu não tinha pensado por esse ângulo antes.

- Viu como é bom ser sincero? – Mais um sorriso – Chega de máscaras?

- Não, minha mãe ainda tem que acreditar que eu gosto dos meus alunos.

- Em qual universidade você trabalha?

- Eu me formei na federal em 77 e conclui o meu doutorado em 81. Agora eu leciono na federal como um dos melhores professores de física que esse país já viu, eu tenho que dizer.

- Bem humilde você.

- Tento não ser tanto.

- Com licença, senhor. – O garçom acabava de chegar à mesa – Aqui está o cardápio.

- Ah, muito obrigado. – Depois de dar uma boa olhada no cardápio ele fez o pedido. – Eu quero muito provar este risoto de camarão.

- E a senhorita?

- Um ravióli.

- Algum acompanhamento?

- Não, obrigada.

- Não hoje – Daniel direcionou seu olhar para Michele -, não quero preocupar a doutora tomando uma laranjada enquanto como, seria demais para ela.

- Para com essa bobagem, você pode tomar suco no jantar como qualquer outro. Nem imagino como seria a minha infância sem as laranjadas.

- Me fala da sua infância.

- Ah, sei não.

- Vai, conta aí! Vai ser divertido. – O físico sorriu tentando convencê-la.

- Ok. – Ela olhou para o teto do restaurante como se tentasse se lembrar de algo – Deixa eu ver....bom, acho que eu devo começar do início, não é? Eu não nasci em um hospital. É quase que um ritual na minha família as mães parirem os seus filhos em casa e isso já é bem antigo. Acho que se eu ficasse grávida hoje os meus pais não me deixariam sair de casa! – Ela riu e ele a acompanhou – Mas eu acho legal, sabe? A família manter essas tradições, acho que faz parte do que a mantém tão unida e forte, não acha?

- A falta de grana não sai da minha família há um bom tempo.

- Eu sou a mais nova de quatro irmãos.

- Nossa.

- É, deve ter sido o que eu falei quando nasci. Ainda acho meio chato a superproteção deles para comigo. Depois que você sai da casa da mamãe já não é mais tão "caçula" assim. – Ela imitou o sinal das aspas – Sem ofensas.

- Não ofende. Eu sou filho único.

- Deve ser um sonho, não é?

- Não, nem tanto. Sinto falta de alguém tentando tomar o meu carrinho de compras.

- Sério? Puxa, por essa eu não esperava. – O garçom retornou para a mesa trazendo o ravióli e o risoto de camarão. – Obrigada.

- Veja pelo lado bom, você deve ter aprendido a dividir suas coisas mais cedo e, olha a consequência disso, hoje você é nutricionista e ajuda outras pessoas. Isso é fantástico!

- Acho que continuo um pouco egoísta. – Nisso ela pegou um pouco do risoto do prato de Daniel.

- E eu ainda não desisti de brigar pelo carrinho. – Ele repetiu o gesto pegando um pedaço do ravióli. A disputa pelos pratos recém-chegados terminou em uma sequência de risos que os deixou ainda mais confortáveis em se confessarem um para o outro. Em meio às gargalhadas e comida italiana, outra lembrança se completa.

Depois de NósWhere stories live. Discover now