Parte 1: Quatro anos depois do fim

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❝pensava eu, idiota, que tudo tinha ido
e são assim os dias: tudo vai vai vai vai
até que, numa quarta-feira ordinária,
você vem de maneira torrencial e re-existe em mim.❞

- Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente.

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Emê de Martnália é uma jovem de vinte e três anos muito bem sucedida, na medida do possível. Ou pelo menos, é nisso que ela gosta de acreditar.

Contudo, Martnália ainda não fazia ideia de como toda a sua estabilidade estava prestes a ser destruída. Em poucos instantes, ela veria toda a farsa que construiu com tanto esforço perder todo o seu valor.

Pouco depois de ter inteirado dezoito anos, Emê se mudou sozinha para Dulce Fildes, uma cidadezinha pacata no interior do Brasil que fica a setenta quilômetros de distância de sua cidade natal, em busca de novas experiências. Nessa época, tudo o que ela mais queria era entrar em contato com novas pessoas e encontrar uma nova identidade.

Nos primeiros meses, morou em um barracão de dois cômodos nos fundos da casa de uma idosa quase surda. Pagou o aluguel apenas por dois meses, até que a filha da senhora a contratou para cuidar de sua mãe e da casa em período integral. Foi quase um milagre encontrar um emprego tão rápido em uma cidade tão pequena onde ela não conhecia ninguém.

Durante o tempo em que cuidou da senhora e de sua casa, acabou se aproximando da filha, que era uma colunista de um pequeno jornal local. E entre muitas conversas agradáveis, Martnália foi percebendo que gostava do ramo jornalístico.

Decidiu por fim entrar na faculdade de jornalismo, e durante os últimos dois anos, estudou em seu quarto e trabalhou na casa ao lado, tinha duas amigas e não precisou se preocupar com quase nada. Portanto, aos vinte e três anos, em comparação com sua vida aos dezoito, quando não sentia nada além de dor, Emê de Martnália se considera muito bem sucedida.

Em alguns dias, ela sentia que todas as coisas que deixou para trás, em sua cidade natal, voltavam como uma avalanche. E nesses momentos, tudo o que Emê conseguia fazer era tentar esquecer, guardar nas profundezas de seu coração. Por enquanto, ela não era capaz de lidar com nada daquilo, e provavelmente não seria por muito tempo.

Entretanto, o engraçado da vida, é que em determinados momentos de plenitude, ela nos dá uma rasteira. Quase ninguém espera por uma notícia ruim enquanto está no conforto de sua casa, bebendo chá e revisando um conteúdo difícil da faculdade, muito menos Emê de Martnália. Mas foi exatamente isso o que aconteceu.

O celular apitou do outro lado da mesa indicando uma nova mensagem. Inicialmente, Emê decidiu ignorar, só que o barulho não parou. Com um certo descontentamento, ela decidiu dar uma conferida nas mensagens e avisar a pessoa de que estava ocupada.

Eram vinte mensagens de sua irmã, Fiona Valentina. Isso por si só não era tão estranho, pois Fiona tinha mesmo o costume de incomodar até ser ouvida. Porém, uma frase em especial chamou a atenção de Martnália:

"Ele foi atropelado por um caminhão desgovernado e morreu."

Por alguns instantes, Emê pensou que tivesse sido seu pai. Ela continuou lendo as outras mensagens com o coração na mão e soube as seguintes informações:

"Estava fora da faixa de pedestres com o telefone na mão e esqueceu de olhar para os dois lados antes de atravessar. Se tivesse olhado, talvez ainda estivesse vivo para contar a história. Ele perdeu sua vida na mesma hora do acidente, com apenas vinte e trê anos, antes de terminar a faculdade."

Emê de Martnália ficou ainda mais confusa. Não sabia quem tinha morrido e muito menos o que ela tinha a ver com aquela pessoa.

Porém, a confusão não durou mais do que alguns segundos, porque pouco depois, Fiona enviou outra mensagem, dizendo claramente quem tinha falecido. E ao ler aquele nome, Emê sentiu como se toda a sua caixa torácica estivesse sendo comprimida por algo muito forte.

Ela pensou que tinha lido errado, que deveria ser algum xará, ou que fosse uma pegadinha de Fiona. Tentou de todas as formas pensar em alternativas para não ser aquilo, para não ser ele. Só que no fundo, Emê de Martnália sabia que o nome estava certo, escrito com aquele erro ortográfico que ela tanto conhecia, e que Fiona Valentina podia ser muitas coisas insuportáveis, mas não era mentirosa.

Logo outra mensagem de sua irmã chegou, e mesmo antes de ler, Martnália já imaginava do que se tratava:

"Emê, você precisa voltar.
Fomos convidadas para ir no velório."

De todos os cenários possíveis, Emê de Martnália não imaginava que a última vez em que iria vê-lo, seria no velório dele.

Todos Nós Que Estamos VivosWhere stories live. Discover now