Nunca julgue o livro pela capa

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Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar. — Khaled Hosseini


O garotinho apertou os olhos profundos, tentando manter os pés trêmulos no solo frio e úmido por causa da chuva torrencial que caía, infiltrando as gotas gélidas nos buracos do teto arruinado. A única peça que vestia era uma cueca slip surrada. A baixa temperatura refletia dor nos ossos, o corpo franzino não suportaria continuar ali depois de ter sofrido aquela sessão de tortura.

Com dificuldade, lançou um olhar aflito para a porta de madeira. Um estrondo de trovoada seguido pelo clarão dos relâmpagos o fez recuar, assustado. Os dentes cerravam um no outro conforme o queixo tremia.Ele estava congelando.

Foi deixado á própria sorte, mas sabia que voltar para a casa podia ser bem pior já que não tinha mais ninguém para defendê-lo. Ao avaliar o cenário ao redor de si, ponderou se valia a pena enfrentar o demônio que o esperava do lado de fora ou ter o privilégio de sentir a maciez da cama aconchegante.

Ele não entendia porque seu pai era um monstro. Será que outras crianças também passavam por isso? Elas pareciam tão felizes quando seus pais iam buscá-las na escola.Elas sorriam e gritavam "papai" ou "mamãe" estendendo o som de risos que deixava o menino intrigado. As poucas lembranças que ele tinha da mãe o entristecia, pois em uma dessas memórias pôde vislumbrar a mesma risada eufórica que deu ao ser abraçado por uma mulher de cabelos negros como ébano e olhos da mesma cor. Era linda...uma princesa, como ele dizia. 

Não tinha nenhuma foto dela guardada — até isso o crápula de seu pai proibiu, incendiando a pouca coleção de retrato da esposa morta.

O pequeno precisou se contentar com a única lembrança vívida dela que possuía.No crepúsculo do dia, o motorista da família o deixou em casa.Ele segurava as alças da mochila ao sair do veículo. Olhou para a porta e viu sua mãe o esperando com um enorme sorriso no rosto enquanto abria os braços para ele. O olhar dela denunciava algo que fez a criança ficar em estado de alerta. Principalmente quando ela disse:

— Meu amor, tomei uma decisão. Mas antes, preciso saber...você gosta dessa casa?

Ele negou. Aquela resposta era tudo o que ela precisava para segredar ao filho o que havia planejado. Apesar da idade, Theo era bastante esperto e inteligente. A decisão de sua mãe era arriscada, porém, o garoto ficou empolgado.

A mãe não precisaria mais lidar com um marido abusivo e ele...não presenciaria mais a face demoníaca daquele homem. Mãe e filho sorriam um para o outro durante o jantar, preludiando como seria a nova vida deles dali pra frente.

Mas essa cena logo desapareceu ao recordar do fim trágico dela. Essa última recordação o marcou profundamente...tanto que ele ficou mais recluso. E ao presenciar nas outras crianças de sua idade aquilo que não tinha, esperava chegar em casa e longe das vistas de seu pai e da babá megera, chorava escondido.

Ás vezes, o pranto abundante arrancava soluços altos e sôfregos, para ninguém escutá-lo, corria para o banheiro e apertava o botão da descarga. Seu pai não gostava que ele chorasse. A babá megera também não tolerava. Porém, nenhum lugar daquela mansão era seguro o suficiente para tampar os ouvidos alheios.

Consequentemente foi descoberto. O que piorou ainda mais as surras que levava. Logo, as torturas tomaram proporções maiores — o progenitor precisou mudá-lo para uma escola particular mais próxima do bairro que mal tinha vizinhos, cujo diretor não passava de um estelionatário conforme havia sido investigado à mando dele. Obviamente, o crápula aproveitou que era um cientista renomado e apresentou a proposta de patrocinar a escola com a condição de que seu filho não sofresse nenhum incômodo.

Rendido ao amor ✓ (VERSÃO NOVA)Where stories live. Discover now