O amor pulou o muro

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Me mandem beijinhos, parei minha vida toda pra atualizar pra vocês hoje (mas me fez bem).

Um capítulo leve, suave, pra aconchegar a gente nesses tempos difíceis, numa vibe Lula 2022 cheia de esperança por dias melhores.

Quem gosta de comentar não se segure porque estou morrendo de saudades de ler vocês.

O quadro é do Leonid Afremov.

Observava de longe Sofia conversar animada com algumas meninas.

Ela parecia feliz.

“Hmmm, tem uns três vultos vindo na nossa direção. Adolescentes? Sim... adolescentes talvez seja uma descrição melhor, naquele estágio bem inicial...”

Lauren desviou o olhar para identificar o grupo, mas continuou a conversa com ela, num tom divertido:

“Então vultos são de fato a definição. Semblantes de si mesmos que ainda não se descobriram”

Os três foram obrigados a parar no meio do caminho por uma Kristen brava sobre a correria perigosa.

Admirava a autoridade elegante das aeromoças.

Era tão difícil ser firme sem pender pela grosseria.

Algumas pessoas tinham esse dom de não silenciarem nenhum incômodo que precisava ser comunicado, sem faltar com a educação.

Ainda observando os adolescentes, respondeu a passageira do avião semanal de Kristen que estava ao seu lado:

“É verdade... é uma época complicada. Estar em pleno funcionamento mas sem manual de instruções”

“E sem referências. Será que aquela minha amiga é o que a amizade é? Será que as amizades simplesmente são assim? Não se tem nada a comparar”

Lauren resumia tão bem esses sentimentos que as pessoas não costumam descrever.

Igual a uma certa Emily Dickinson:

“‘I’m out with lanterns looking for myself’

[Estou fora com lamparinas procurando por mim]

“Exatamente”

“Ainda me sinto um pouco assim”

“Com lamparinas?”

“É... você não?”

“Agora sim. Antes eu estava um pouco engessada eu acho”

“Antes?”

“De te conhecer”

Encarou os olhos adultos.

Quando via os olhos de Lauren perto assim pensava que havia uma razão para que fossem da cor dos crocodilos.

Sorriu sentindo os avisos de sua mente tocando de forma escandalosa.

Aquela conversa estava lhe lembrando de todas as vezes em que uma Camila adolescente não sentia vontade de flertar com sua companhia.

Faria isso por ela.

Continuou enfrentando aquele esverdeado perigoso com um sorriso destemido e trocou o tom de voz para um timbre que sua presa nunca ouvira:

“Faço você se sentir como uma adolescente, Lauren?”

Aquela afrontada podia parecer letal, mas os olhos dela também guardavam perigo.

Eram da cor da margem dos rios.

Lauren desviou o olhar.

Fraca.

Percebeu a mulher soltar o ar de um riso incrédulo.

Mas estava mesmo querendo confusão hoje.

Não parou.

Manteve a vista acompanhando a vinda do grupo, agora numa velocidade comportada, mas resmungou, petulante:

“Responde”

O rosto voltou para sua direção, muito mais próximo do que antes.

Talvez a chegada iminente dos adolescentes havia motivado o sussurro.

Talvez a advogada não lidasse bem com provocações.

Mas foi mesmo como um bote.

Com um passo suave ela se posicionara só uns centímetros atrás do seu ouvido direito.

Sentiu o ar da respiração de Lauren amaciar sua pele enquanto a voz elevou a aposta do seu timbre inapropriado a níveis que violavam alguma regra implícita da convivência em público:

“Você me faz sentir bem adulta, Camila”

Sentiu um arrepio subir por sua nuca suscetível como o estalar de um rio que testemunha o ataque súbito.

Mas não era hora de estremecer.

Fosse ela adolescente, teria se derretido na mais recente poça londrina daquela praça.

Mas os anos ajudam.

Trocou sua voz para algo mais condigno da proximidade das crianças e mais seguro para a sua proximidade com a crocodila.

O tom do puro cinismo:

“Adultos coram muito Lauren?”

Riu do som rebelde que saiu dos ares da mulher contrariada.

Não conseguia ver seu rosto naquela proximidade escandalosa mas conhecia o suficiente da outra para imaginar sua expressão.

A adolescente mais alta do grupo, que ainda não era lá essa altura toda, chegou cantarolando um pedido todo dengoso.

Numa atitude classicamente juvenil, de quem não repara o contexto de nada para além de si, não percebeu o que havia interrompido:

“Conta uma estória pra gente Laureeeen”

A do seu lado emendou, pegando a mão escamada numa súplica desleal:

“É Lauren! Conta uma estória pra gente!”

Parecia uma dinâmica familiar para eles.

A advogada, que não pareceu intimidada com aquela armadilha de fala em público, só disse, sorrindo:

“Vocês sabem como funciona, escolham um assunto”

Qualquer que tenha sido o estado mental anterior dela claramente havia se desligado com a chegada dos vultinhos.

Sua voz estava calma e aconchegante.

Eles continuaram:

“Queremos uma estória de amor!”

“De amor?”

Soltaram uns risinhos, até o mais novo, que ainda não se pronunciara.

“Igual em filme!”

“Hmmm... posso pensar em uma. Mas primeiro cumprimentem Camila”

Isso fez com que recebesse três oi’s, agora tímidos.

Devolveu o assunto para o interesse principal:

“Olá. Também quero ouvir uma estória de amor”

Pareceram adorar achar uma cúmplice.

Lauren acenou em direção a um banco da praça, liderando o caminho.

Esperou os quatro sentarem, mas não acompanhou a plateia.

Antes de começar a narrativa, comentou:

“Eu sei que Camila é linda de um jeito que deixa a gente meio sem fala, mas vocês precisam treinar se apresentarem”

Sentiu sua bochecha aquecer enquanto o mais novo dizia que se chamava Tommy.

Achava que essa era a primeira vez que a elogiava sobre algo físico.

Tentava não dar muita importância sobre a percepção alheia da sua aparência, era tudo tão arbitrário e tantas vezes feito para vender produtos cosméticos.

Com certeza não estava em dia com a rotina da pele e o tratamento dos cabelos e todo aquele trabalho diário de colocar uma armadura corporal para se proteger dos ataques contínuos de uma sociedade que sempre vai arranjar um tanque de deslealdade estética maior.

Talvez por isso aquele elogio lhe tocara mais.

Não estava especialmente bem vestida, nem especialmente maquiada.

Não era a sua versão depois do filme em que a personagem aprende o que valoriza seus melhores ângulos e enfrenta desconfortos vários para alcançar o auge do que lhe era humanamente possível de encaixe nos moldes desejados.

Era a sua versão que não chegava nem perto desse máximo potencial.

E mesmo assim Lauren disse que era bonita de um jeito que deixa as pessoas sem fala.

Chegava a ser cômico.

Obviamente não petrificaria ninguém naquele estado, mas acreditava que Lauren acreditava nisso.

E ela nem havia dito a frase igual quem faz um gracejo e espera reconhecimento por ser muito gentil.

Não era igual quem dava flores já constatando que o buquê é lindo e o cartão muito carinhoso, como que numa entrega performática para um público invisível projetado pelo seu próprio ego.

Havia dito como quem diz um fato da vida.

Estaria mentindo se falasse que nunca havia ponderado sobre os outros romances da advogada.

Não era certo nem era saudável, mas era natural.

Mas o comportamento dela sempre lhe afastava de inseguranças.

Era como se a sua confiança, ao invés de penalizada com as duras faces da realidade em que a ninguém é permitido ser confiante, fosse abraçada com um valor ainda maior do que ela idealizara.

Voltou ao presente, ouvindo que as outras duas se chamavam Olivia e Ivy, e que a galanteadora havia decidido seu enredo:

“Já sei qual vou contar. Estão preparados?”

Verdade fosse dita, ela nunca estava preparada.

O que será que estava vindo...

Mas as crianças gritaram um sim animado e isso resolveu a questão.

De pé como um bardo querendo entreter a realeza, Lauren começou:

“João amava Teresa”

Pausa para o suspense.

“que amava Raimundo”

Outra pausa dramática.

“que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili”

Olivia perguntou:

“E a Lili?”

“não amava ninguém!”

Ouviu a respiração cortada das crianças, desoladas.

Ivy disse indignada:

“E aí???”

Lauren continuou contando muito séria, como se tudo fosse fato advindo de manchete:

“João foi para os Estados Unidos. Teresa para o convento. Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia (mas isso é bobagem, ignorem essa parte), Joaquim... Joaquim... mudou-se! E Lili casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história”

Não evitou rir alto.

Os outros espectadores tinham aproveitado menos o final não ortodoxo.

Estavam mergulhados num misto de revolta e não entendimento.

“Lauren! Isso é uma estória de amor??”

A adulta não se abalou com a crítica do público.

“De amor real. É assim que o amor acontece fora dos filmes. É um poema famoso no Brasil, do Carlos Drummond de Andrade”

Não conseguiu priorizar as crianças.

Pediu:

“Conta outro dele”

Sua vizinha respondeu antes da destinatária do requerimento:

“Lauren nunca conta duas estórias no mesmo dia. Agora vamos ficar com essa estranha”

“É que vocês precisam refletir sobre as palavras. Não adianta sair contando sem dar tempo de interpretarem. Mas tudo bem, conto outra só hoje...”

“Conta uma romântica de verdade então Lauren”

“Hmmm... de 0 a 10, quão romântica?”

“10!!!”

Pessoalmente acharia um 8 ideal, mas foi voto vencido.

Lauren também pareceu achar demais:

“10 é muito, 10 é para deixar vocês cheias de açúcar, pior que bolo de chocolate da sua avó, Olivia”

“Eu amo o bolo de chocolate da minha avó”

Lauren riu.

“Okay... okay... um 10 então. Uma estória de amor de verdade”

Conhecia já a mulher o suficiente para saber que aquele tom de voz estava satisfeito demais para significar só o que dizia.

Ouviu atenta ao segundo ato:

“Olha: o amor pulou o muro. O amor subiu na árvore, em tempo de se estrepar”

Ouviu um gritinho abafado do seu lado.

Parte sua queria se divertir conferindo as reações das crianças mas estava curiosa demais sobre as palavras que seguiriam para desviar seu olhar.

“Pronto, o amor se estrepou. Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino (andrógino aqui quer dizer que o corpo do amor tem características femininas e masculinas ao mesmo tempo)”

Também significava que Lauren encaixava exemplos positivos de existências diferentes do padronizado na cultura das crianças desde cedo...

Mas o que aconteceu com a ferida?

A resposta veio num tom mais caloroso que o do restante do poema:

“Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã”

Que lindo.

Aquilo sim era de deixar as pessoas sem fala.

Mas não aos seus vizinhos de banco:

“Lauren, essa foi pior que a primeira!”

“Muito pior! Não entendi foi nada”

Sentiu o mais novo cutucando discretamente com o ombro Olivia.

E ouviu o cochicho no sentido de não reclamarem...

A criticada, que parecia completamente imune aos dislikes, perguntou:

“E você Camila, o que achou?”

“Tinha tempos que não me divertia tanto. Mas ei... talvez eu tenha uma estória mais parecida com o que vocês querem para hoje”

Ela podia ouvir aqueles contos estranhos de Lauren o dia todo, mas os adultos deveriam priorizar as crianças, certo?

Uma criança em específico parecia preenchida pela mais pura empolgação:

“Você vem para frente então! Troca comigo”

“Não fique tão empolgada, você já conhece essa”

Quatro rostinhos lhe encaravam, em expectativa.

Respirou fundo.

Estava confiante que encontrara o material mais romântico de todos para sua audiência.

Como começar...?

Bem.

Melhor não pensar demais.

Conhecia aquela estória como conhecia o rostinho de Sofia, que já havia escutado aquela narrativa muitas vezes, aliás.

Modulação PolicromáticaWhere stories live. Discover now