Sofi

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Notas: foto do Yanny Mishchuk (@yanny_mish)

Chegando à Trafalgar Square, Camila é recebida pela artista de rua que se acomodara na frente da National Gallery. A loira a cumprimenta com um aceno de reconhecimento, enquanto canta e toca no piano o último hit da neozelandesa Lorde.

Nenhuma das duas reparara na coluna de Nelson no caminho até lá, a obra dedicada ao ganhador da batalha de Trafalgar em 1805, que havia sido esculpida por E.H. Baily em seus honrosos 5 metros fundados na plataforma de bronze feita das armas antigas do arsenal de Woolwich.

Nem mesmo pararam para apreciar as diversas fontes adicionadas em 1845, cheias de sereias, golfinhos e tritões, que há muito tempo haviam passado a reservar seus segredos às crianças e alguns turistas mais atentos. Ou ainda, as estátuas de antigos generais de guerra, que em sua imponência buscavam ensejar na juventude emoções de patriotismo e clamor pela glória.

Não notaram especialmente o movimento dos londrinos que se preparam para suas jornadas diárias ou o cheiro de café que deixam em seus rastros ocupados.

Não, o cenário era muito habitual para que fosse notado de verdade. Talvez os únicos que realmente saturassem tudo que a paisagem poderia contar eram o jovem mochileiro colombiano, que acabara de chegar na cidade e mal poderia arrancar os olhos de seus detalhes, e a pequena Emily, que acompanhava sua tia até a compra de ingressos para Les Misérables.

Camila, alheia a tudo isso, só reparava na artista lituana, pensando em seu talento majestoso, no que se sentia agradecida pela sua localização.Havia dado muita sorte em tê-la por perto, todas as manhãs, preenchendo suas vindas e horas de almoço, com músicas bem escolhidas e bem executadas.

Em forma de elogio, deixa 5 libras no chapéu designado, decidindo esperar pelo refrão para entrar no edifício, afinal estava um pouco adiantada hoje. A artista sorri em sua performance, apreciando a atenção da jovem mulher, que sabia ser coisa disputada.

Alguns dias a morena parecia tão perdida em pensamentos que passava em sua frente sem demonstrar notar a proximidade preocupante da fiação com seus saltos agulha...

Hora de se concentrar no refrão, precisava honrar seu público.

But honey I'll be seein' you, ever I go

A frase faz Camila pensar em Sofi, sua irmã.

Realmente, tinha a mania de achar que via a pequena em todos os lugares.

Não tão pequena assim agora... havia completado 10 anos em abril, não era?

Devia ser hábito humano pensar que as pessoas que você ama estão ao seu redor o tempo inteiro, esperando em encontros inesperados como gotas certeiras de chocolate no bolo caseiro dos seus dias.

Hoje parecia aquelas partes em que várias gotas se aglomeravam em despeito da tentativa de aleatoriedade do confeiteiro, formando uma seção enorme de felicidade de uma vez só.

Camila não via a hora de terminar sua restauração.

Retomando o seu foco, entra na galeria com passos decididos, pausando apenas para cumprimentar os funcionários da seção de audioguias. Eles já estão ocupados entregando fones de ouvido e instruindo os visitantes sobre a ordem de seções recomendada.

Não faltava muito agora para que pudessem comentar, "E não se esqueçam de observar na sala 2, Ticiano e Veneza 1500-1530, a pintura Baco e Ariadne, recentemente restaurada como prometido".

Talvez Camila chegasse uns minutos mais cedo para reparar na reação de felicidade dos visitantes ao receber essa notícia.

Podia imaginar até os quadros da sala 2 felicitando a companhia magnífica que voltava, em gritos italianos de boas-vindas ao mitológico casal, prontos para soltar seu jovem carisma no cômodo.

Modulação PolicromáticaWhere stories live. Discover now