Baco e Ariadne

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No limiar entre estar acordando e efetivamente acordar, o inconsciente de Camila Cabello se preenche de energia matinal ao se lembrar que restava apenas 7 por 27 centímetros de restauração para que seu projeto atual terminasse.

Dessa forma, a mente de Camila decide por acordar sem prolongamentos, pronta para finalizar a obra que demandara dedicação contínua por mais de três anos.

O quadro a ser renascido havia sido objeto de comodato entre a National Gallery londrina e um bilionário italiano, que a desejava como fundo da sua cerimônia de casamento.

Como ele realizava generosas doações anuais para a galeria, o diretor geral viu no evento uma oportunidade de relação exterior unida à fortificação de laços, no caso, monetários e profundos.

"Baco e Ariadne", de Ticiano, era certamente a decoração casamenteira mais apaixonante que poderia existir.

A estória da mulher abandonada na ilha de Naxos por Teseu, que sofre um momento de desespero profundo seguido magicamente pela descoberta de um amor muito mais vivo, havia encantado gerações que visitavam a National Gallery.

Ariadne, ao se virar ouvindo a chegada de um grupo de desordeiros, realiza a troca de olhares mais romântica da História da Arte, ao encontrar Baco, o deus do vinho que se projeta imediatamente de sua carruagem, sem ao menos refletir nas consequências do ato para os seus tendões, desejando se aproximar da beldade que identifica.

O visitante desavisado que encarava de repente aquela cena se via instantaneamente experimentando a sensação descrita na obra: amor à primeira vista.

E essa paixão imediata representada mostrou-se nada passageira, mas ao contrário, se eternizou após a morte de Ariadne, quando Baco junta uma constelação em nome de sua amada, cujas estrelas são precocemente retratadas no canto superior esquerdo do quadro.

A parceria para o casamento moderno, entretanto, terminou de forma trágica quando o caminhão que transportava a tela sofreu um acidente após desembarcar do Eurotúnel.

Embora houvessem algumas pessoas feridas na batida, os únicos pedidos de socorro que Camila poderia responder, por aptidão desenvolvida e paixão intrínseca, era o dos milhares de centímetros danificados de um dos maiores orgulhos da galeria britânica.

Ela entendia como sua missão retirar cada quadrado precioso da obra de seu coma prolongado, ressurgindo cores e unindo espaços que nasceram para estarem juntos, de modo a salvar os novos olhares humanos da lacuna que o esquecimento da obra de Ticiano causaria.

Por vezes, quando Camila sentia algum vazio ao longo dos anos de sua vida, seu pensamento indagava sobre os quadros cuja restauração não havia sido realizada, visões perdidas de arte que incomodavam sem se denominar.

Determinada a contribuir com a condição humana compartilhando as obras que sublimavam a experiência da vida, a mulher acordava todos os dias com vontade de trabalhar, fazendo do seu ofício uma verdadeira ode à excelência artística.

Na manhã de hoje, contudo, precisaria primeiro enfrentar a missão um tanto quanto mundana de se banhar e vestir.

Rapidamente ligando o aplicativo do spotify em seu celular, abafa o som do jornal televisivo que invadia seu recanto pela ingerência do vizinho.

Ao som de Nina Simone tudo ficaria bem.

My baby just cares for me - Nina Simone

A morena começa sua higiene matinal, sorrindo ao pensar que hoje faria a restauração da última e uma das suas partes preferidas da obra, a referência que Ticiano fez a uma escultura que hoje se situa no Vaticano, "O grupo de Laocoonte".

Isso lhe faz pensar que talvez fosse uma boa ideia experimentar o restaurante italiano que abrira perto do seu trabalho... bem, hoje não.

Hoje já iria finalizar o quadro, seria emoção suficiente.

Deixaria o macarrão à carbonara para uma quinta qualquer.

Isso.

My baby just cares for me...

Há. Sim...

Camila ri ao pensar que talvez Nina não houvesse cantado pensando em uma mulher e seu carinho por uma tela danificada.

Mas que a situação se encaixava perfeitamente na música, ela teria que admitir...

Não...

Não chamaria aquela obra de seu bebê... não.

Mas sendo honesta... esse era um dos poucos limites que tinha estabelecido para si.

And even Lana Turner's smile

Is somethin' he cant see

Bem, talvez ela pudesse abrir um espaço para o sorriso da jovem Lana Turner também.

Mas definitivamente não para o da mulher de seu encontro da noite passada.

Não mesmo.

Depois de dois pratos ouvindo sobre a metodologia correta para se aferir passagens com o menor preço possível e uma sobremesa inteira ofuscada pela provação de criar respostas aceitáveis para perguntas sobre o seu guarda-roupa, Camila desejava apenas esquecer aquela experiência desagradável.

Não haveria sorriso que compensasse para ela uma paixão por habitualidades.

Bem, a fins de fazer justiça, a moça havia sido simpática e se mostrara inteligente.

Só não era simpática e inteligente nos tópicos que lhe agradavam.

Ah bem. Seria a baby de alguma outra pessoa.

Camila até havia tentado iniciar um tópico sobre a voz de Nina Simone, mas pensando bem, essa havia sido a cartada final, o sete de paus que frustrara o seu jogo de juntar corações.

A resposta da mulher ela nunca iria se esquecer.

"Nina Simone? Horrível morrer por câncer de mama, não é? Muito sofrido."

Poxa, a mulher era uma das vozes mais belas já encontradas, havia sido uma das primeiras artistas negras e ingressar na renomadíssima Escola de Música de Julliard, cantara no enterro de Martin Luther King, era a responsável pela existência de "Feeling Good" e enfrentara bravamente uma sociedade preconceituosa com garra e maestria.

Mas a resposta havia sido aquela.

"Nina Simone? Horrível morrer por câncer de mama, não é? Muito sofrido."

Não há como mudar.

Como era mesmo aquela frase da Charlote Brontë?

Não, não. Era a outra irmã.

Emily Brontë.

Isso.

"Seja qual for a matéria de que as nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais".

Nada de uivar ventos aqui...

Camila tinha certeza de que quaisquer que fossem os materiais da sua alma, não poderiam ser mais incompatíveis com os da sua então companheira de mesa.

Havia sido o fim de uma estória de linhas curtas. Um parágrafo sobre Ally dizendo que haveria de ser uma chance melhor que nada e lhe entregando o contato da sua conhecida de trabalho. E outro que concretizara a tentativa.

Bem, realmente Ally não havia quebrado a promessa, mas uma mulher poderia ter expectativas um pouco maiores que coisas melhores que nada.

O mês de setembro, por exemplo, tinha tudo para se mostrar excepcional.

Notas:

Uma magia conhecer vocês!

Amo minhas leitoras mais do que croassaint de avelã.

Muito obrigada por todo o carinho que passam nos comentários e pelos votos. Sou doida com vocês.

Meu instagram literário é @descansandoamor e o sobre arte é @descansandoarte

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