{Quarta} - Velhos Hábitos

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Já deviam passar das duas quando bateram na minha porta. Por um instante, achei que poderia ser David, pensamento bobo.

Minhas expectativas foram destruídas quando James, um dos empregados, me chamou do outro lado da porta.

- Pode entrar - digo o vendo carregar uma caixa embalada num belo papel colorido - Pode deixar na mesa - me levantei num salto para descobrir o que era - Obrigada, James. 

James saiu me deixando a sós com minha curiosidade. Rasguei o papel abrindo a caixa como o presente de aniversário que nunca ganhei. Levantei a tampa da caixa deixando que aos poucos a luz entrasse iluminado seu conteúdo.

Bukowski. O livro velho com páginas desniveladas cheia de rabiscos repousava no fundo da caixa. Eram meus rabiscos de letras ilegível de dias frios em que eu escrevia anotações enquanto Kenny lia os poemas.

Ele queria que eu lembrasse, que eu pudesse sentir a nostalgia daqueles tempos que não foram tão ruins quanto eu fazia parecer. Ele queria que eu revivesse as partes boas. 

Eu não deixei tudo para trás porque detestava minha vida. Fui embora porque não queria continuar a viver quartas como se fossem quintas. Naquela época, eu ainda não via meus defeitos. Eu acreditava que quando conheci Kenny e comecei a ler autores mortos e ser uma pretensiosa erudita, eu estava crescendo. De uma certa forma, eu estava, mas se não tivesse ido embora, nunca teria me tornada quem eu sou, pois todas minhas mudanças foram adaptações ao choque com o mundo real.

Olhei para a xícara de chá cheia a minha frente. Estava fria, o excesso de açúcar havia decantado no fundo do copo. Tomei um rápido gole fazendo uma careta e corri para fora do quarto descendo as escadas com meus sapatos em uma das mãos e o livro na outra. Virei o corredor tão rapidamente que me bati com David deixando tudo cair no chão.

- Você tá bem? - David ia se abaixar para me ajudar, mas estendia a mão para cima em recusa.

- Ótima - Me reergui passando direto por ele.

- Onde você tá indo? - sua voz atrás de mim não me fez parar.

- Ceder a velhos hábitos? - sequer me virei para respondê-lo.

- O que isso significa? - ele gritou.

Fiquei intrigada com a pergunta e enfim parei no final do corredor. Pude vê-lo se aproximar em passos lentos.

- Significa que eu preciso que alguém leia Bukowski para mim - disse finalmente feliz com minha conclusão.

Era o que eu precisava, daquela nostalgia. Rever as partes boas da minha antiga vida e talvez encontrar um meio termo em tudo que estava acontecendo.

- Eu posso fazer isso - ele dizia oferencendo seus serviços erguendo sua sobrancelha de uma forma sugestiva.

A curiosidade tomava meus olhos tentando desvendar até quando ele continuaria com aquele jogo.

- São duas da manhã - ele continuou - Você precisa mesmo sair para que alguém leia para você? Eu adoraria fazer isso.

- Eu sei que você adoraria, mas temos um acordo e você não está cumprindo ele.

- Você nunca concordou com nosso acordo - ele se aproximou um pouco mais.

- Por isso você ainda não desistiu? - estiquei os braços tentando pará-lo, mas ele continuou a andar em minha direção.

Cup of TeaWhere stories live. Discover now