Capítulo I - Despertar em meio ao coro dos anjos

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"Desperte Matheus, Matusa'el... desperte..."

Em uma noite de céu limpo e lua cheia que iluminava a terra, ainda mantendo um ar frio, ao toque dos sinos da igreja anunciava-se meia noite despertando os pombos na torre que assustados saíam em bandos barulhentos. Únicos sons, pois não havia ninguém nas ruas, apenas frio, silêncio e escuridão.

Mas as badaladas despertaram um alguém. Deitado sobre um túmulo um jovem esconde os olhos sensíveis à luz daquela lua tão magnífica que parecia cair sobre ele. Era preciso forçar os olhos para ver, suportar a dor ou retornar para o sono, para a escuridão.

"Desperte Matheus, desperte... Matheus... Desperte..."

Quando adormecia novamente, vozes surgiram de todas as direções, eram na maioria de mulheres e crianças quase como um coro angelical. Com dificuldade ele se ergueu no tumulo gelado de mármore e esfregou os olhos para tentar ver as pessoas, a visão nublada lentamente dava lugar a imagens. As figuras se revelaram como estátuas dos anjos e santos que observavam o misterioso rapaz vestido com um terno preto fino de seda levemente desarrumado. Não havia ninguém ali.

"Onde estou? Quem sou eu?"

Ele murmurou com uma das mãos no rosto, Matheus então se voltou para a torre da igreja de onde o sino tocava pela última vez, deixando o eco da badalada no ar. Olhando à sua volta, ele buscava respostas ou alguém que pudesse as dar. Mas até onde sua vista alcançava não havia ninguém.

Repentinamente nuvens negras surgiram no céu, passavam velozmente pela lua limitando sua luz, e quando as trevas se fizeram mais negras, Matheus percebeu vários olhos que brilhavam por todos os lados.

"Quem são vocês? Respondam! O que faço aqui?"

Os gritos como trovões, fizeram os olhos se revelarem como corujas assustadas que voaram para todas as direções, algumas passando próximas a Matheus que levantava os braços para se proteger.

"Saiam! Saiam! Se não podem me dar respostas, vão embora!"

Quando retirou os braços da frente de seu rosto, Matheus percebeu com olhos arregalados as cicatrizes em formato de cruzes nos pulsos. Cortes verticais e longos sobre as veias e os horizontais menores, O que era tudo aquilo? Ele se perguntava nos pensamentos confusos. Talvez apenas um sonho muito estranho, que logo acabaria revelando ao jovem sua identidade esquecida.

Mas quanto mais caminhava com passos desajeitados, apoiando nas estátuas e túmulos, Matheus percebia que a atmosfera de sonho apenas encobria a pura e assustadora realidade.

O cemitério era imenso, ao ponto que se pudesse suspeitar da sua finitude, a escuridão namorava a neblina e encobriam o caminho, Até onde os olhos de Matheus podiam ver não havia nada, apenas mais caminho a seguir até que acertou os passos e adotou a postura da coragem. Respirou fundo e com a mão esquerda alisou o cabelo desarrumado que caia em uma franja sobre seu olho na inútil esperança de ver mais além.

"Ajude-me..."

Uma voz despertou a atenção de Matheus, que começou a olhar em todas as direções na busca do murmuro que ecoava pelas criptas e túmulos.

"Quem... Onde você está? Também estou perdido!"

Falando em voz alta, Matheus esperava pela resposta, mas após segundos de silêncio, ouviu passos sobre o chão de pedra que deduziu ser o início de uma corrida e pode perceber finalmente um pequeno vulto que se distanciava velozmente em um dos caminhos entre várias estátuas de santos.

"Espere!" Ele gritou. Mas o vulto não parou e quando já ia sumindo do alcance dos seus sentidos, Matheus começou a correr passando entre as estátuas que pareciam observá-lo, quando finalmente encontrou a grade de aspecto gótico que demarcava os limites do cemitério, Viu do outro lado da rua, um imenso casarão em ruínas cercado por jardins abandonados e sem vida, por onde o vulto corria na direção da imensa porta de madeira. Pensou em pular, mas ao escutar sons de correntes balançadas pelo vento, olhou para o lado e viu em meio à neblina o portão duplo de ferro enferrujado escancarado. Correu o mais rápido que pode para sair dali e atravessar a rua.

Quando chegou ao outro lado e já adentrava pelo jardim, Matheus viu uma iluminação em um dos cômodos do terceiro andar daquele casarão que lembrava mais um castelo se não fosse pelo tamanho menor. A luz trêmula parecia provinda de velas ou candelabros atormentados pelo vento frio daquela noite.

Matheus olhou para os lados. A rua parecia sumir na escuridão da neblina, Quando deu seu primeiro passo no jardim, sentiu que alguém se aproximava rapidamente vindo da rua a sua direita.

"Você! Onde ela está?" E do meio da neblina brotou um rapaz que falava em um alto tom de voz, apontando o dedo para Matheus, mas que apesar da atitude hostil e do olhar intimidador, não conseguiu abalar a apatia de Matheus que o fitava em silêncio.

O jovem tinha olhos grandes e azuis que nada combinavam com aquela expressão séria. Seu cabelo volumoso escorria pela sua cabeça em cachos loiros de aspecto angelical, ele vestia uma roupa social, sapatos e calças pretas de um terno, mas com camisa fina branca desarrumada. Dois de seus botões estavam abertos revelando uma espécie de rosário anormalmente belo em tom dourado preso em uma corrente que se confundia nos cachos loiros.

"Eu nada sei do que fala nesse tom, nem sei o que estou fazendo aqui, apenas ouvi um chamado, um pedido de ajuda de alguém que não teve coragem de se revelar". Apático, Matheus virou-se e encarou os olhos o rapaz, que desmanchou sua expressão ofensiva.

"Então "Ela" apareceu para você também..." O rapaz recolheu-se em uma pose introspectiva.

"Ela? Como disse, não sei do que fala ou do que se sucede" Disse Matheus.

"Sim, ela. Uma menina aflita que corria pelas ruas escuras. Não sei se fugia ou se queria que eu a seguisse".

"Não cheguei a ver, mas acredito que foi ela, e definitivamente queria que eu a seguisse, caso contrário não me pediria ajuda e partiria daquele jeito".

"E para onde ela foi?" O jovem loiro perguntou impacientemente.

"Entrou nesse lugar" Matheus fez um gesto com a cabeça indicando o casarão.

"Se ela corre perigo, eu devo ajudá-la!" O rapaz falou enquanto deslocava-se na direção do casarão deixando Matheus para trás.

Matheus se surpreendeu com a atitude destemida ou mesmo precipitada do rapaz. Não sabia o que fazer até que viu o jovem arrombar a porta de madeira apodrecida fazendo muito barulho e levantando uma nuvem de poeira. Decidiu então segui-lo e ver o que estava acontecendo.

Quando entrou, Matheus viu que o jovem loiro havia subido a escada de degraus velhos e quebrados. Rapidamente passou o olhar pelo local e concluiu que ele realmente estava abandonado. Os poucos móveis que estavam ali eram cobertos por panos velhos e sujos semelhantes às cortinas rasgadas que balançavam com o vento, lembrando fantasmas pelos cantos dos cômodos.

"Qual o seu nome?" Perguntou Matheus ao rapaz que se distanciava.

"Daniel" Ele respondeu em um tom discreto.

Finalmente haviam chegado ao terceiro andar de onde vinha a luz. Matheus estava mais atrás e via o jovem loiro entrando no quarto iluminado que aos poucos se revelava aos olhos emergindo na escuridão do lugar. Castiçais e várias velas vermelhas espalhadas pelo quarto mantinham a iluminação. Cortinas vermelhas de seda balançavam como ondas em um mar de sangue, e no centro, em meio a almofadas vermelhas, laranjas e douradas, uma bela mulher adormecida envolvida por um vestido requintado de tecido branco e leve sobre seu corpo que enfatizava suas curvas.

Entre o céu e o inferno - A gênese do fimWhere stories live. Discover now