Capítulo 23. 🌲🌙🌲

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Podia ouvir os ecos que reverberavam em meus sonhos como se eu fosse uma caverna profunda e repleta de caminhos obscuros. Eu podia sentir que o mal estava crescendo como uma chama violenta que devora uma floresta. A qualquer momento eles iriam se erguer contra nós e sequer sabíamos o que poderíamos enfrentar. Dentro de mim havia uma batalha silenciosa e dilaceradora e eu tinha noção de cada ruína que surgia. Rivana ainda estava adormecida como se seus olhos nunca tivessem visto o mundo. Jamais iria abandoná-la. Não a deixaria, mesmo estando sob os cuidados daqueles seres que estavam incansáveis na tentativa de trazê-la de volta daquela estranha prisão. Havia também algo em mim, que me provocava, como uma voz zombeteira, ela me conhecia e talvez soubesse que parte de mim queria vingança.

– Eu sinto sua falta – falei para Rivana, adormecida e envolta em flores brancas e delicadas como sua pele. – Não sei o que farei, Vana! Por que você não acorda? Já estamos aqui há muito tempo, mas não parece que o tempo deles é o mesmo para nós. Lá fora está tudo coberto de branco e frio.

Rivana parecia estar em uma outra matéria. Seu corpo quase emitia uma própria luz e de certa forma, eu estava me convencendo de que ela estava tendo alguma melhora. Ainda não se movia, exceto pelo sutil movimento de seu peito subindo e descendo enquanto ela ainda respirava.

– Eu lembro o quanto você odiava o inverno e fazia de tudo para não sair de casa – continuei. Meu coração doía com a ideia de que talvez ela sequer pudesse me ouvir ou sentir que o tempo todo eu estava ali ao seu lado. – Lembra do dia da Torta-Quente? Eu sei que sim! Era o único dia no inverno em que você se animava e parecia sorrir, como se o frio oprimisse o seu sorriso apenas um pouco. Você parecia sorrir quando estávamos juntas. E naquele dia, tínhamos que levar as tortas para a troca, uma tradição quase tola, mas deliciosa, você dizia, porque todas as famílias preparavam uma torta... teria que ser a melhor e levava para a grande mesa na frente da igreja e lá todos trocavam suas tortas e se deliciavam com as receitas dos outros, ou nem tanto.

Parei. Senti uma náusea me dominar e uma vontade de chorar. Eu estava sentada em uma raiz protuberante da árvore branca e de repente senti um tremor. Olhei para Rivana na esperança de que ela despertasse e me puxasse para o seu abraço. Eu sentia falta do seu cheiro quando nos abraçávamos e eu podia sentir o aroma de seus cabelos. Decidi continuar. Ela deveria estar ali dentro daquele corpo. Não haveria lugar para ela se esconder na escuridão. E eu estava disposta a trazê-la de volta.

– Naquele dia eu fui até a sua casa, com a minha torta na mão... Te esperei por uma infinidade, você parecia estar vestindo uma armadura contra o frio e de repente, lá estava você com roupas de frio que mal podia se mover. – Eu sabia que muitas criaturas do santuário estavam me observando e me questionei se elas poderiam estar me julgando por estar ali, meio sozinha. – Fomos pela neve até a igreja e você tropeçou, derrubando sua torta – comecei a rir, ela odiava lembrar daquele dia, mas sempre se rendia ao riso frouxo quando lembrava do que fizemos a seguir. – O seu recheio era mirtilo e caramelo e tudo se espatifou pela neve branca. E você seguiu meu conselho de encher a torta de neve e colocar escondida entre as outras.

Era justamente neste ponto em que nós duas caiamos em gargalhada ao lembrar da pessoa que teve o azar de pegar a torta de gelo. Felizmente, ninguém nunca soube das verdadeiras responsáveis por aquilo e como uma sentença de ser valentão, Renan e seus amigos meio que levaram a culpa. Mas nem mesmo agora eu conseguia arrancar uma reação de Rivana. Ela permanecia imóvel e adormecida. Os lábios esbranquiçados, sem aquele tom rosado e vivido que sempre tiveram. Eu queria acordá-la. Se eu pudesse me por em seu lugar. Iria tirá-la daquele pesadelo. Carregar aquela culpa estava sendo um peso para mim. Mas se tivesse algo que eu pudesse fazer, eu faria. Iria até a última consequência e até o recanto mais sombrio da floresta para trazer Rivana de volta. Beijei sua testa fria e passei a mão por seu cabelo que ainda era macio.

Além da Floresta | Versão Wattys 2020Where stories live. Discover now