- Capítulo 14 -

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Não demorou muito até chegarmos ao sul, que estava bem frio agora que o inverno havia começado. Danitria e eu fomos ajudar um grupo de pessoas necessitadas em um abrigo de sem tetos. Os oficiais policiais estavam cada vez mais agressivos e abusivos a cada dia, o que só piorava a situação das pessoas nas capitanias. Até mesmo as pessoas mais ricas estavam sofrendo, obviamente não da mesma forma que os demais, mas esses, pelo menos, tinham regalias dadas suas posições sociais. Porém, no gueto, as coisas estavam cada vez mais precárias e até as zonas mais afastadas do centro da cidade estavam se juntando a eles.

Acabei aprendendo alguns cuidados médicos de improviso com os rapazes em Pontas, o que foi bem útil para ajudar uma pessoa ou outra ali, onde não haviam muitos especialistas no assunto. Uma garotinha, que parecia ter a idade de April, estava com um corte feio na testa, que disse ter feito ao cair no chão e uma das batidas mais recentes dos oficiais. Fiz o que pude limpando o local e uma senhora verificou se precisava de pontos, o que não era o caso. Em meio a tudo isso eu ficava cada vez mais preocupado com meus irmão, seu paradeiro e segurança.

Vez ou outra eu procurava Danitria com os olhos e me certificava se ela ainda estava ajudando a servi o ensopado que haviam preparado para as pessoas ali. As panelas eram enormes, bem maiores do que eu achei que uma panela poderia ser. Eu nunca havia visto uma de verdade quando mais novo, mas nunca as imaginei tão grandes.

Com tantas pessoas em minha volta, pela primeiro vez na vida, imaginei como seria ser rei. Não era algo que eu cobiçasse, longe disso. Mas aquelas pessoas estavam desesperadas por ajuda, e algo me dizia que suas condições não eram tão melhores antes recém estalado caos. Meu pai não havia sido um rei ruim. Não na minha opinião, pelo menos. Ele havia criado as bolsas de estudos técnicos para as pessoas que não podiam pagar, e até mesmo o plano de pagar metade do curso para outro grupo. Mas e os outros? Não poderia haver algo a mais para os ajudar? Famílias como a de Danitria não podiam pagar nem pela metade da mensalidade. E quando essas pessoas não têm onde consegui comida? Como estariam comendo agora se não fossem os nossos homens roubando dos grandes armazéns?

Quando a fila de pessoas que precisavam de ajuda médica terminou, talvez porque as pessoas estivem mais preocupadas em matar a fome, eu me afastei daquele local e fui até Danitria, beijando seu rosto, enquanto ela servia uma senhora com os cabelos em embaraçados. Jack estava bem ao seu lado, lhe ajudando a servi colheres, e para minha surpresa, tentando usar um dos truques que eu o ensinei sobre ganhar garotas. Otávio riu de mim, quando eu disse que, se o garoto podia dirigir, também poderia cortejar. Porém , nunca achei que o garoto iria mesmo por aquilo em prática em tão pouco tempo, ainda mais com minha garota.

- Ei, Jack. - comecei a dizer, dando um batidinha de leve em sua nuca. - Essa não. Ela é minha.

- Mas tu não tá noivo da outra? A loirinha. - pergunto, esfregando o local em que eu havia acertado.

- Teoricamente, sim. E é você, não tu. Um príncipe não diz "tu". É muito informal.

- Não implica com o menino. - Danitria reclamou. - Ele não é um príncipe.

- O Will está me ensinando a ser um. - respondeu, com um sorriso vitorioso.

- Caso precise de um sucessor no cargo de príncipe contumaz. - expliquei, quando ela me lançou um olhar interrogativo. - E alias, ele estava dando em cima de você.

- Não estava mesmo! - ela respondeu, o que pelo visto queria dizer que achava absurda minha afirmação.

- Ele estava sim. Foi com essa tática que eu consegui meu primeiro beijo, mas eu a usei com uma garota com a idade mais adequada a minha na época e não uma comprometida.

Com isso eu puder ver em seu rosto as palavras que não saíram de sua boca. Algo como não acreditar que eu estava ensino aquele tipo de coisa para o garoto. Ou era isso ou ensina o garoto a usar uma faca, o que eu não faria tão cedo, devido ao fato dele ter um péssimo habito de aplicar meus ensinamentos em ocasiões inconvenientes.

Quando todos tiramos um intervalo, sentei com Danitria para contar tudo que estava pra acontece, ou pelo menos tudo que eu acreditei que ela precisava saber. Ela ainda enrugava o nariz quando eu falava de Evelyn, mas fora isso pareceu entender o que estava acontecendo. Só então ela me contou sobre uma conversa do capitão Nero, membro do conselho, que indicava justamente coisas relacionadas a traição deles para contra o rei. Ele planejou o atentado na pista aérea daquele dia e, pelo que ela me contou, era bem conveniente para eles se livrarem de mim. Eu realmente não deixaria Ric assinar essa ordem.

Foi só então que fiquei sabendo que ele havia atacado Danitria. Não consegui evitar o impulso que me fez levantar e encará-la exigindo saber que história era aquela. Ela havia sido atacada fisicamente por ele, dado a descoberta dela, sendo acusada de ser uma espiã e eu até mesmo consegui ver, em minha mente, como ele faria para sair ileso naquilo. Ele a acusaria de traição, diria que ela tentou atacá-lo e por isso ele se defendeu. Implantaria provas, talvez até arrumasse testemunhas.

Sentir como se minhas veias fossem canais subterrâneos de águas termais em volta de um vulcão. A vontade era socar a primeira coisa que passasse em minha frente. Ele havia machucado ela e eu nem ao menos tinha notado ou sido informado. Estava tão desesperado em não a perder, que acabei nem percebendo nada. Ela já estava sobrecarregada com algo antes mesmo de me ver com Evelyn e entender as coisas de uma maneira errada. Eu sabia que aquele devia ser o momento para tentar me redimir, consolá-la, mesmo com atraso. No entanto, eu não consegui. Podia sentir vapor atravessar minha pele e a raiva me fez ignorar tudo ou qualquer coisa que eu pudesse fazer por ela ali, então levantar, andando para o mais distante possível.

Já longe do abrigo, escorado em um murro despedaçado, me deixei extravasar um pouco da raiva, chutando tudo em minha volta, passando as mãos no rosto enquanto andava em círculos, batendo a cabeça no concreto, tudo menos gritar. Não podia chamar a atenção para mim, afim de manter a discrição.

A noite, sem que a raiva tivesse realmente sido liberada de mim, depois de ajudar algumas pessoas a encontrarem um cantinho onde podiam ficar, me recusei a ir para uma sala separada para dormir. Não questionei e nem julguei o fato de minha mãe de ido dormir numa sala dessas, com privacidade e tudo mais. Entretanto, eu queria ficar ali, junto de todos. Arrumei um cantinho e passei a noite toda abraçado com Danitria mexendo em seu cabelo, que haviam sido cortados na altura dos ombros e adicionado uma franja, tudo para tentar ficar diferente e passar despercebida. Particularmente eu não gostei de como ficou. Preferia ele longo, mas não estava numa posição em que pudesse ficar reclamando. Eu mesmo não parecia o homem que ela conheceu, agora com cabelo sobre o rosto, barba por fazer e uma cicatriz aqui e outra ali. Eu também não me sentia o mesmo, nem o mesmo que estava na piscina, nem o que implorou para que ela o escutasse, talvez nem o mesmo que invadiu o quartel em Pontas, e isso em vários sentidos.

Eu não dormir aquela noite. A respiração de Danitria quase não podia ser ouvida em meio aos sons de pessoas se mexendo em suas camas improvisadas, crianças reclamando do frio e pessoas tossindo. No meio da noite vi Otávio saindo para ficar de vigia e, sem precisar fazer nada além de me lançar um olhar, pediu que eu tomasse conta do menino, que veio em minha direção, enrolado em um cobertor.

- Posso ficar? - Jack perguntou, em meio a bocejos.

- Vem cá. - respondi, lhe estendendo uma mão e o mantendo abraçado a mim.

Danitria acordou com o movimento e manteve o garoto aconchegado em seus braços e então eu vi como poderia ser minha vida com ela. Eu já havia fantasiado isso antes, porém, as circunstâncias eram tão diferentes. Eu me via com ela em Dagma, imaginando uma vida sem Thomas e sem ter que roubar momentos para ficarmos juntos. Chegava até mesmo a ser engraçado. Era a primeira vez que nos imaginei como pessoas comuns com vidas simples, uma casa pequena, talvez no gueto, e com um filho em nossos braços. Tudo o que eu já havia passado de ruim em minha vida parecia tão estupido e insignificante perto de tudo o que aquelas pessoa passavam no seu dia a dia, principalmente agora, quando as pessoas que deviam os proteger são quem os estão machucando.

Eu não era rei, eu não era um simples plebeu, muito menos um rebelde terrorista. Eu podia não ser o mesmo homem de apenas quatro meses atrás, mas agora talvez eu fosse o homem que meu pai esperava que eu fosse quando me de meu título. Com a mão no pingente que meu pai havia me dado, olhando para Danitria e Jack, eu soube quem era e o que devia fazer.  

Jogos da Ascensão II - As Garras de EtamaWhere stories live. Discover now