Prólogo

2 0 0
                                    

Prólogo

"Os heróis geralmente são mortais que

se destacam dentre os indivíduos comuns e,

muitas vezes sem brilho, que habitam este mundo"

– Kirnit, aprox. 425 ACD.

É difícil narrar histórias. Até para alguém que viveu ao menos parte delas. Além da memória muitas vezes não nos favorecer (modificando situações e diálogos, como inevitavelmente deve ter ocorrido em diversos pontos desta narrativa – principalmente nos trechos que só pude descrever através do relato de terceiros), costuma ser bem difícil encontrar as palavras certas, as melhores descrições para cada situação.

Lembro-me de um exemplo clássico: Viltan, quando escreveu a epopéia "Nemitus". Segundo a tradição popular, o Cavaleiro da Espada Longa de nome Jake Gudstur teria galopado às pressas para a cidade élfica de Nethel para salvar sua amada Briss da fúria de seus colegas de exército. Viltan se baseou nessa tradição para escrever a seção final do poema, no entanto logo esbarrou numa dificuldade: co-existem cerca de sete versões diferentes sobre a morte de Jake e Briss pelos Cavaleiros da Espada Longa, e cada uma dessas versões é bem conhecida e difundida em diferentes regiões de Astar. Para resolver o impasse, Viltan usou mão da licença poética para unificar os regionalismos, criando uma versão da morte do casal que continha elementos de todas as sete. Desse modo, o autor valorizou a lírica em detrimento da fidelidade histórica, já que seria impossível, ou incansavelmente trabalhoso, chegar à verdadeira versão do fato. Uma escolha muitas vezes difícil a ser realizada por um narrador que deseja que sua obra sirva como referencial às futuras gerações.

Mas meu pai, o falecido e saudoso Fertick Eleniak, já dizia que nós bardos, que cantamos as tristezas e alegrias do mundo, não devemos nos intimidar diante da tarefa de narrar grandes feitos. E posso afirmar com segurança que os grandes feitos que presenciei, e inclusive tomei parte, se encontram entre alguns dos maiores feitos heróicos que Boreatia já testemunhou.

Assim, apesar de desafiador, é para mim nobre e prazerosa empresa narrá-los através deste tomo. Escrevo num momento de instabilidade política no continente de Behatar, onde atualmente resido. Uma guerra civil ameaça dividir o reino em dois devido ao descontentamento com o recém-coroado novo rei, do qual também tratará minha história. Ela, assim, surge num momento agitado para que, quem sabe, através das demonstrações de bravura e heroísmo que carrega, possa inspirar o povo do Reino Boreal a reconhecer o verdadeiro caminho a ser seguido por sua pátria. Escrevo dentro das paredes do palácio real, longe das fronteiras perigosas e cidades disputadas onde ameaça estourar o conflito, mas, como bardo e, consciente de minha capacidade, procuro ao menos atenuar suas possíveis conseqüências através de palavras que narram os feitos de mortais a servirem de exemplo a todos.

Dentre esses indivíduos, divididos em dois grupos de viagem durante suas andanças heróicas, estive presente em apenas um. Portanto, como já parcialmente mencionado, as proezas do outro serão aqui narradas de acordo com o que soube a partir de seus membros, quando pude encontrá-los. Procurei ser o mais fiel possível aos relatos que ouvi – apesar de, assim como Viltan, algumas vezes também recorrer à licença poética. Com exceção do primeiro capítulo, que tratará de heróis de ambos os grupos, procurarei a partir do segundo alternar cada grupo entre os capítulos. Dessa maneira, se o capítulo segundo tratará do grupo em que viajei, o terceiro mostrará o outro grupo, que se reuniu na cidade costeira de Feritia, enquanto o quarto voltará a meu grupo – e assim sucessivamente.

Pode a princípio parecer um tanto confuso, como a fala simultânea e ensurdecedora das bocas de um "Abocanhador Matraqueante", porém meu pai possuía o dom de ser claro ao cantar e narrar feitos e, como foi ele a me ensinar as artes de um bardo, desde pequeno, acredito que honrarei sua maestria.

Antes de iniciar minha história, desejo antes apenas pedir as bênçãos de Mager, Senhor dos Elfos, protetor das artes e daqueles que as exercem, para que me inspire e ilumine durante a escrita deste tomo. Muitos dos feitos nele descritos foram igualmente possibilitados por vossa divina benevolência, e assim lhe imploro, Primeiro Filho de Northar e Rimya, que eu seja bem-sucedido em minha tarefa.

Mas eis que o travesso Feger já inspira a inquietação no leitor diante deste relato e, antes que tal sentimento possa crescer e na pior das possibilidades remeter a divindades não-benignas, inicio a narrativa...

Killyk Eleniak, Borenar – Capital Real do Sacro Reino de Behatar e Ilhas, 22 DCD.

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerOnde as histórias ganham vida. Descobre agora