Capítulo IV: A comitiva de Kal Sul

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Capítulo IV

"A comitiva de Kal Sul"

A estrada para Feritia, apesar de ter retomado certo tráfego de viajantes, encontrava-se mais vazia do que o normal. Talvez fosse uma característica comum àqueles caminhos após o Crepúsculo dos Deuses; os relatos sobre criaturas, humanóides ou não, à espreita dos desatentos para atacá-los – e Beli Eddas sabia bem que tais histórias possuíam sólido fundamento – afastavam a maior parte das pessoas comuns das vias do continente. O aspirante a mago, no entanto, via tal risco mais como oportunidade do que como perigo. Enfrentar um goblinóide ou orc seria um ótimo desafio para testar seus conhecimentos arcanos em combate, apesar de ainda serem limitados e de sua vitalidade física não lhe garantir a capacidade de sustentar muitos ferimentos. Por isso mesmo a misteriosa herança de Palas Eddas, o tio que jamais imaginara possuir, fosse-lhe talvez bem-vinda. E se o parente houvesse sido, em vida, um conjurador poderoso dotado de vasto acervo mágico? O destino parecia favorecê-lo, após tanta penúria já vivida...

Com os pés calçados de sandálias pisando determinados o pavimento da estrada, cabeça oculta pelo capuz do manto que, apesar de um tanto sofrível em temperaturas mais altas, preservava-lhe a identidade, Beli Eddas dirigia-se já há alguns dias na direção de Feritia. Desde o encontro com o mensageiro nas terras ao norte da capital, procurava percorrer o máximo de léguas possível enquanto o sol mantinha-se no céu, parando para repousar durante a noite somente o mínimo necessário: oito horas, tempo suficiente para que seu corpo recuperasse as energias e sua mente pudesse, quando acordado, concentrar-se para lidar com as artes arcanas. Além disso, toda manhã, logo após despertar e antes do café – quando o tinha – o jovem gastava aproximadamente uma hora preparando os truques que usaria durante o dia, lendo as improvisadas folhas de pergaminho que lhe serviam de grimório.

Era fato que os magos sempre tinham de preparar com antecedência as magias que utilizavam. Muitos viam esse característica como fraqueza, porém Beli enxergava-a mais como o preço de se poder aprender praticamente um estoque ilimitado de conjurações, apenas o modo de usá-las sendo mais restrito. Outros praticantes de magia, como os feiticeiros, não precisavam preparar seus truques previamente, conseguindo decorá-los e assim realizá-los quando quisessem e mais vezes por dia, no entanto a capacidade que possuíam de aprender novas conjurações, por guardá-las apenas na memória, era bem mais baixa e limitada. Beli achava isso no mínimo patético. Ter um grimório e nele poder registrar qualquer magia que aprendesse, o número máximo delas sendo ilimitado, era algo prático e motivo de orgulho. Magos eram os supremos mestres arcanos. Mais do que utilizar as artes mágicas, eles as estudavam e as compreendiam com amor e dedicação. O rapaz almejava se tornar, com o tempo, um grande praticante de magia. E esperava, dentro em breve, abandonar aquelas surradas folhas de pergaminho e obter um grimório de verdade – primeiro passo rumo à excelência.

Ao menos a falta de um volume adequado para o registro de magias era compensada pela vasta variedade de componentes materiais que trazia consigo. Guardados numa bolsa de couro que trazia a tiracolo embaixo do manto – mantida assim afastada de olhares curiosos – tais artefatos constituiriam, a uma pessoa comum, um monte de quinquilharias inúteis e até bizarras. A um mago, porém, tais objetos eram vitais para a conjuração de inúmeras magias, apesar de raramente obterem efeito sozinhos.

Existiam três tipos de componentes mágicos – combustíveis para as conjurações que, utilizados pelo mago, geravam o resultado desejado quando aliados à devida dose de concentração. Quanto mais poderoso ou duradouro o efeito da magia, mais concentração era requerida – e os componentes, por conseqüência, eram quase sempre mais dispendiosos. Os verbais constituíam encantamentos falados. Palavras ou frases mágicas que tomavam parte no processo de conjuração de uma magia – mas não todas. O que deveria ser dito, para cada truque, era estipulado pelo próprio conjurador. Não existia padrão. Desse modo o mago era capaz de realizar os mesmos encantamentos que os outros, mas de maneira distinta – protegendo seus métodos e inclusive podendo assim pegar seus oponentes de surpresa. A língua a ser utilizada não importava, apesar de os conjuradores mais tradicionais freqüentemente optarem pelo idioma arcano e suas variações. A origem desse dialeto era bem misteriosa e nem os maiores estudiosos conseguiam determinar quando surgira, apesar de ser senso comum dizer-se que era oriunda dos primeiros tempos após a criação do mundo...

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerWhere stories live. Discover now