Capítulo I: Ventos de Outono

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Capítulo I

"Ventos de Outono"

Haviam se passado vinte e um anos desde o Crepúsculo dos Deuses.

Principiava o mês de Itirkanaan, e com ele vinha a estação do ano conhecida como outono. A natureza, desdobrando-se em frutos, cedia aos mortais férteis colheitas, enquanto as folhas escurecidas e secas das árvores, de suas copas se precipitando, anunciavam a renovação de um ciclo.

Era possível perceber a chegada de tal estação em cada aspecto da fauna e da flora. As formas de vida se preparavam para a chegada do rigoroso inverno, dentro de mais três meses: os animais estocavam alimentos e já preparavam suas tocas para se abrigarem do frio, e as plantas lançavam seus últimos esporos ao ar antes que a neve tudo congelasse. A vida seguia seu curso natural, a natureza conduzindo-a pelas mãos como uma grande mãe, representada pela bondosa Wella.

E, imerso na densa Floresta Negra, que cobria parte do centro do continente de Behatar, o jovem Caleb Rosengard estava mais do que nunca em contato com tal ciclo.

Com os pés cobertos por improvisadas sandálias feitas de folhas, ele, trajando sua leve túnica cinzenta e trazendo numa das mãos seu fiel bordão de madeira, caminhava sobre o tapete natural que as árvores, livrando-se de suas copas, começavam a proporcionar. Cabelos negros, pele clara e com uma barba rala cobrindo-lhe o rosto sereno, o rapaz seguia um caminho definido através da vasta floresta, a qual, no decorrer de seus vinte e cinco anos de vida, aprendera a conhecer como a palma de cada uma de suas calejadas mãos. Ela representava um ambiente inóspito e perigoso para os forasteiros, devido à sua densidade de vegetação – o que tornava fácil nela se perder – e aos animais selvagens que a habitavam. Mas para Caleb, que crescera naquele local e fora desde muito cedo introduzido ao pleno conhecimento da natureza, com sua magia e perfeita sincronia, aquela floresta era seu estimado lar.

Os Rosengard compunham uma família descendente de um dos mais antigos círculos de druidas de Boreatia. Há séculos seus representantes, espalhados pelos quatro cantos do mundo, zelavam pela proteção da natureza e a manutenção de seu ciclo, além de serem exímios praticantes das artes mágicas a ela associadas. Retirando suas forças da fauna e da flora – forças estas cedidas, em primeiro lugar, pela própria essência de Wella – os druidas conseguiam interagir completamente com os elementos naturais, e até se fundir a eles.

Sim, eles tinham consciência, mais do que ninguém, do imenso ciclo em que tomavam parte. E, por saberem disso, era exatamente dele que retiravam seu imenso poder.

Sorrindo, Caleb continuou caminhando, pisando as folhas e transpondo as grandes raízes das árvores centenárias. Normalmente suas espessas copas praticamente bloqueavam a luz solar, mas, devido à estação, agora mais raios conseguiam chegar até o solo da floresta. Era quase final de tarde, e logo o céu assumiria tons laranja similares aos que predominariam durante aqueles meses na vegetação. Num dado ponto, aos pés de um majestoso pinheiro, o jovem olhou para trás e, procurando com seus olhos entre os arbustos, exclamou:

- Venha, Anuk!

Eis que surgiu dentre a mata um belo e forte lobo branco, adulto, seguindo o druida como o leal companheiro que era. Farejava o chão no rastro de algum pequeno animal – um caçador nato. Ou então talvez se interessasse pelo cheio de algo ou alguém estranho à floresta. Isso era inclusive costumeiro: a estrada principal ligando Borenar, a capital do continente e do Reino Boreal, às cidades da costa oeste, passava bem no meio da Floresta Negra. Caleb nunca compreendera totalmente a razão de uma via tão utilizada por viajantes cortar aquela região tão hostil aos não-habituados a seu ambiente. Muitas pessoas já haviam se perdido ali, e o druida inclusive guiara algumas delas de volta à segurança da vida à qual estavam habituadas. Outras morreram, perdidas ou vitimadas por alguma fera. A vegetação da floresta era tão impetuosa que, de tempos em tempos, soldados do reino eram obrigados a abrir novamente a estrada, cortando parte das plantas e da grama que rapidamente a tomavam. Não seria mais simples utilizar uma estrada que contornasse a região, ao invés de empreender tanto trabalho e freqüentemente correr riscos ao utilizá-la?

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerOnde as histórias ganham vida. Descobre agora