Capítulo III: Um navio de histórias

1 0 0
                                    

Capítulo III

"Um navio de histórias"

A Briss era uma nau fina e longa, poderia dizer-se até esguia. O conjunto da estrutura de convés estreito com o comprido e afiado esporão à proa se assemelhava a um sabre, como a maioria das embarcações élficas. Nomeado em homenagem à donzela da lendária narrativa "Nemitus", uma história de paixão e guerra, o navio possuía aquele formato para trespassar o vento, vencendo correntes e lufadas desfavoráveis. Surtia efeito. Não era à toa que os barcos de Astar eram considerados há muitos séculos os melhores do mundo.

Realizava uma viagem entre a terra dos elfos e a renascente Behatar. Partira durante o inverno, efetuando uma rota que contornava Etressia e Equitis. Um caminho mais longo, por certo, porém mais seguro. Viajar por muito tempo em alto-mar àquela época poderia levar a uma alarmante situação unindo-se a carestia de suprimentos às baixas temperaturas. E, apesar de muito habituado à natureza e aos aspectos naturais, o organismo dos elfos era, em sua constituição física, mais fraco. Chegavam a idades avançadíssimas e eram catalisadores quase inatos de magia, porém sofriam mais com danos corporais e condições ambientais adversas. Por isso, melhor seria seguir um trajeto mais favorável. Ainda mais considerando a grande distância a ser percorrida.

A tripulação do Briss àquela ocasião era, em sua maioria, élfica. Existiam alguns humanos, poucos halflings, mas os representantes de Astar compunham a parcela mais significativa. O capitão e os marinheiros, porém, não provinham do continente, mesmo pertencendo à mesma raça. Eram elfos das Ilhas Kartan. Com seus olhos levemente puxados, pele mais morena e sotaque característico, mostravam-se exímios navegadores, apesar de serem alvos de certo preconceito dos astarianos e outros ali presentes que viam o povo de tal nação como um aglomerado de piratas e comerciantes desonestos. O que poucos sabiam – informação divulgada como mero rumor – era que o próprio financiador daquela viagem era de Kartan. Optara por erguer âncora a partir de Astar devido aos custos reduzidos, às facilidades apresentadas pelas companhias ali instaladas e ao maior número de passageiros àquele período do ano. E sim, o indivíduo misterioso e esperto provavelmente se encontrava em meio à tripulação, anônimo.

Todavia, não existia somente um anônimo ilustre a bordo daquela embarcação. Parecia até que os deuses, pedindo a Feger que colocasse em movimento sua infame Roda da Fortuna, haviam reunido naquele convés vários mortais de passado obscuro, aura intrigante e futuro destinado a grandes feitos. Quietos, afastados, cada um isolado dentro de seu próprio plano particular, remoendo eventos de antes e ansiando por venturas adiante. Suas histórias seriam reveladas aos poucos, como raios de sol invadindo aos poucos um cômodo escuro pelas frestas de uma janela vedada, dissipando gradualmente a escuridão da dúvida.

Com a aproximação do litoral de Behatar e do destino final do navio, o clima gélido do inverno ficava para trás, cedendo lugar aos dias mais quentes e agradáveis da primavera. Do convés era possível vislumbrar, em meio às águas de tom azul-esverdeado, cardumes de peixes se deslocando pelas correntes submersas e, com relativa freqüência, outros representantes da fauna marinha, como águas-vivas e até tubarões.

Céu anil, poucas nuvens. De pé junto a uma das bordas do navio, braços nela apoiados, um elfo em particular admirava tal espetáculo com intensa admiração. Cabelos castanhos curtos arrepiados – na verdade ligeiramente espetados, várias mechas se assemelhando, em forma, às suas orelhas protuberantes. Vestia roupas coloridas, as peças se alternando entre tonalidades azuis, amarelas e vermelhas. O tórax era coberto por uma espécie de casaco, com uma capa lisa presa às suas costas lhe descendo até a altura dos joelhos. As calças eram simples, com alguns rasgos aqui e ali, e os pés se encontravam inseridos em botas marrons confortáveis, ainda que um pouco surradas. Tendo os olhos perdidos em meio à vastidão do oceano, assoviava de leve uma canção. Música... seria capaz de viver sem ela?

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerOnde as histórias ganham vida. Descobre agora