Barquinhos de Chinelas

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O céu ficou todo escuro e uma chuvinha fina começou a cair tí

mida até se tornar um dilúvio. Observei no parapeito da janela da

cozinha, a enxurrada descendo a rua, alagando as construções que

estão em um desnível abaixo do calçamento.

O vizinho havia feito uma hortinha no passeio da casa que está

para alugar e sempre que o via regando as cebolinhas e gerânios

lembrava que o cachorro malhado fazia xixi todo dia por ali. Acho

que ele plantou as plantas porque a namorada o obrigou, mas ele nem

liga para essas coisas, o que gosta mesmo é de fazer um barulho

infernal com sua banda de MPB que tem nome de The Wall (o engraç

ado é que esse nome deve ser algum tipo de ironia, já que Pink Floyd

era uma banda de Rock dos anos 80, e provavelmente nunca

escutaram esse estilo de música).

Choveu muito durante a tarde, e lá pelas dezesseis horas, um sol

desses de verão que rasgam o mês de setembro, riscou o céu num

arco íris, enquanto a enxurrada amarelada descia pelas beiras do meio

fio. As crianças apareceram para brincar de barquinho de chinelas.

(Em Minas; desde pequenos chamamos os chinelos de "chinelas", e

isso realmente não nos é estranho, até que alguém de outro Estado

ache graça nisso).

Quando criança; também brincava de colocar a chinela para boiar

na enxurrada com os colegas, o ruim era quando elas caiam no bueiro

e era certo que iríamos 'tomar' umas chineladas com o pé que não foi

levado pela água. E pior que levar umas chineladas, era o castigo que

vinha em seguida: usar um pé da que não desceu pelo esgoto e outro

pé de alguma outra chinela cujo par havia arrebentado. Quando eram

da mesma cor não havia problema algum, mas quando eram de cores

diferentes, destoava bastante, e a encarnação dos colegas era geral.

As crianças ficaram brincando e gritando com as corridas de

chinelas navegantes até que a chuva começou a cair novamente, a

The Wall continuou com seu som acústico 'de bacia' e o arco íris foi

sendo apagado lentamente.


 Revisado em 28/03/2017


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