Epílogo

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Mederi Cartter

Todas as pessoas que eu devia impressionar estavam aqui. E o que foi que eu fiz? Paguei de ridícula quando saí correndo do salão. Não aguentei.

Me sento na ponta da cama com as mãos apoiando a cabeça.

A cena dos dois girando no salão volta à minha mente. Ele em seu terno branco e ela com o vestido negro. Tão lindos.

Ele parecia não se importar comigo, como se os momentos que passei com ele não tivessem significado nada.

Talvez não tenham.

Mas foram verdadeiros, ele fez serem verdadeiros.

Me levanto da cama e ando até o banheiro. Paro em frente à enorme pia de mármore e fito a parede lisa. Aperto um pequeno botão do lado da torneira e a parede se abre em duas. O enorme espelho aparece e fico olhando para ele. Puxo os grampos que prendem o coque em meu cabelo.

As faixas de aplique que colocaram para fazer volume caem, tirando grande parte do peso que sinto na cabeça. E as ondas se soltam até metade das minhas costas. Puxo o zíper do vestido e tiro-o, deixando no chão. Abro a torneira e deixo a água fervente encher a banheira.

Volto para a frente do espelho e apoio as mãos na pia. Abaixo a cabeça e deixo os fios de cabelo baterem em meu rosto.

Me agacho e pego uma pequena bolsa com alguns produtos de beleza que estão no gabinete. Encontro uma bola de algodão e encharco com um líquido róseo.

Passo na pele do meu rosto para tirar as cores da noite. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, retiro as camadas de cílios postiços. Coloco tudo na pia e me olho no espelho.

A pele branca e o cabelo vermelho criam uma sensação estranha em mim. Agora, tudo me parece diferente. Pego uma pequena caixa da bolsa e coloco na pia. A caixinha é separada em dois compartimentos recheados de um líquido gelatinoso. Com a mão esquerda afasto as pálpebras do meus olhos e enfio o indicador da mão direita no globo.

- Minha filha. - ele estava sentado na grama, apoiado em uma árvore. - Tudo vai ser bem difícil agora.

Não entendi a preocupação dele.

- Como assim, papai? - eu estava com a cabeça recostada nele e ele passava as mãos em meus cabelos.

- Você vai ter que ser forte, meu amor. - ele se levantou. - Mais forte do que eu sou.

- Não entendo, papai.

- O mundo, meu bem. Algumas pessoas gostam de fazer mal ás outras. Pessoas especiais são alvos de caçadas. Especiais, assim como você.

Olho no espelho os olhos bicolores e repito o processo com o outro olho.

- Isso, meu amor. Muito bom. - ele me disse. - Viu como você ficou linda? Essa cor combina bem com você.

- Mas por que isso? - eu estava assustada.

- Por que você vai precisar. A maldade vai chegar em você, e você precisará ser outra pessoa. Com o tempo você entende.

Ele passou a mão em meus cabelos.

- Acho que podemos mudar isso também.

A voz de meu pai, me lembro tão bem dela. Mesmo que não a ouça há tanto tempo. Meu coração aperta numa saudade imensa, a qual sei que nunca irei matar.

Pisco os olhos repetidamente, para me livrar do incômodo. Escondo a caixa no local habitual, e volto a me encarar no espelho. Meu cabelo está crescendo, e os fios loiros já começam a aparecer na raiz. Preciso retocar isso logo. Nem consigo me lembrar de como sou com a cor natural nos cabelos.

Repentinamente, tudo volta à minha mente. A pista se abre, todos admirados com o belo casal que dança na pista, parecendo envoltos numa aura de romance. Akira envergando o corpo de Anippe para baixo, os cabelos dela arrastando no chão, os olhos fechados. O beijo no final.

Um frasco de shampoo explode dentro do box do banheiro, e me assusto. Encaro minhas mãos com os olhos arregalados, e me sinto tremer.

'Esqueça isso, Mederi', censuro a mim mesma, e respiro fundo. 'Sua obrigação é ser forte. Você prometeu.'

Observo no espelho a curta cicatriz que se estende na minha face esquerda, algo que é fácil de esconder com maquiagem, e já o faço automaticamente todas as manhãs. Por mais que os anos passem, há coisas que nem o tempo pode apagar. Nem da minha pele, nem da minha memória.

Tomo um banho longo, e me deito na cama. A visão de Akira e Anippe saltando na pista volta à minha mente na escuridão da noite solitária, e tomo as minhas pílulas para dormir, para me desligar desta noite terrível.

Funciona melhor do que eu espero, sempre.

Uma batida. Um capotamento. O carro caindo na água e afundando. Meu pai, minha prima e eu entrando em pânico. A janela aberta ao meu lado, tive a sagacidade de me soltar do cinto de segurança e sair por ela, como eu já devia ter visto em algum filme ou em alguma aula na escola. Ou talvez tenha sido o instinto animal de sobrevivência.

Depois, eu de pé no acostamento, com o rosto sangrando, implorando ajuda, em desespero, suplicando ajuda para o papai no fundo do rio.

Desperto num grito, com o rosto molhado de suor. Vou cambaleando até o banheiro, e lavo o rosto, ainda um tanto ofegante. Sacudo a cabeça para afastar esses pensamentos, que vez por outra acabam retornando aos meus sonhos.

Escuto um som no pátio e vou até a janela.

Afasto as cortinas de linho azulado e renda para ver melhor. Um dos helicópteros que trouxe os agentes já está decolando. Uma oportunidade a menos de conseguir reconhecimento.

Volto para o banheiro, e enxugo o rosto, olhando meu reflexo.

Meu pai me alertou que eles chegariam. As pessoas que querem se aproveitar de mim. E eles chegaram. Uma seleção de jovens, que fizeram de si mesmos uma quadrilha. São uns insubordinados, mas são muito covardes para tentar tomar uma ação contra nós. Podem ser teimosos, mas não são burros o suficiente para tentar medir forças com uma Organização mundial.

Rebeldes contidos pelo medo. É isso que eles são.

Me apoio na bancada de mármore e me aproximo do espelho.

Este sinal, esta marca que pouco vejo, embora esteja no meu próprio rosto, é um lembrete constante de tudo que houve na minha vida. É o atributo que me faz ser perigosa, e especial. Eu nunca havia entendido como nem por que, até que a chegada deles mudou tudo.

Cerro os punhos, e o condicionador, o umectante e o óleo corporal explodem como pequenas bombas no banheiro, mas não me abalo.

Vejo meus olhos violetas no espelho, e desejo, pela milésima vez, matá-los com minhas próprias mãos.

InfectedWhere stories live. Discover now