ATO 3

5.8K 822 244
                                    

  Não há nenhuma prisão em nenhum mundo na qual o amor não possa forçar a entrada.  

     Meu relógio era mais antigo que um relógio

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.

     Meu relógio era mais antigo que um relógio. Formado apenas por uma pequena rocha pontuda onde o sol batia e conforme sua sombra movia-se, dava-me noção de tempo. Não sabia exatamente para que eu queria saber as horas, mas me deixava mais lúcida. Era um habito comum andar de relógio por aí, ainda mais quando mamãe me advertia sempre que acordava atrasada para o colégio. Porém nada disto importava. Nem tempo e muito menos mamãe me ajudariam a sair desta cela.

Estou aqui pois algo que não me lembro aconteceu. Talvez seja pelo fato de, com meus próprio punhos, tivesse tentado matar a diretora. Muito imprudente da minha parte, já que Pompoo é o dobro do meu tamanho e provavelmente mais forte. Ela aparentava ter uma saúde muito melhor do que a minha.

O fato dela ter trucidado um animal indefeso, pintado a parede com seu sangue, não me deixava duvidas de que poderia fazer qualquer coisa comigo. Talvez arrancasse minhas tripas e pendurasse como troféu no lustre de seu escritório. Vai ver, ela está esperando a hora em que eu morra com alguma doença, devido ao frio, e até pior, poderia ter colocado algo mortal naquela sopa podre. Quem sabe? São diversas possibilidades.

As outras crianças deveriam saber a farsa que esta mulher é.

Precisavam abrir os olhos de verdade.

Habituadas com rotinas completamente vagas e sem sentido. Ocas por dentro. E minha cabeça não parava. Era minha companheira mais fiel, porém chata na maior parte das vezes. Pensar demais dói, e de dores já bastam o resto do meu corpo. Olhei para o corredor e não vi mais o lobo. Ele some sempre no mesmo período do dia.

Quando o portão de ferro se abriu novamente, não vi nenhum animal de dois metros saindo de lá.

— Boa tarde, Pandora — A voz conhecida de Rumpel emergiu das sombras junto com o resto de sua decadência. Rumpel, o zelador, possuía cabelos ruivos e barba da mesma cor. Um rapaz bonito, mas fadigado. Notava-se de longe que algo o afligia.

— Então está na hora? — Murmurei sem olha-lo diretamente.

— Na hora do que?

— De me matar.

— Ah, não. Não sou um assassino — Sorriu — Sou apenas um zelador preocupado — colocou as mãos nos bolsos de sua velha calça jeans desbotada. Uma sombra se mexeu atrás dele, bem maior e mais inclinada. Era meu carcereiro peludo. Rumpel, como se já tivesse notado a presença da criatura antes mesmo dela aparecer, tirou uma das mãos que escondia no bolso, e estendeu para baixo, acariciando os pelos dele enquanto caminhava sem pressa, sentando ao lado de seus pés.

— O que estão fazendo comigo é desumano. Monstruosamente desumano.

— É complicado mesmo. Minha irmã tem métodos poucos convencionais para as crianças que não se comportam. Não foi por falta de aviso. Pessoas inteligentes de mais tendem a sofrer mais.

— Vocês tem medo não tem? Medo de perderem o controle sobre nós.

— Não temos medo nenhum. Você é que deveria ter medo. Medo do mundo lá fora, caso um dia for vê-lo. Acredite minha jovem, não tem nada para se ver lá, a não ser mais decepções. A vida é traiçoeira.

— Vida, que fora tirada de mim — As lagrimas voltaram a escorrer. Passavam pela minha bochecha magra — Não interessa a você, o que vou passar quando for sair daqui, e se sair. Só diz respeito a mim. Sua irmã não matou apenas um animal inocente naquela noite. Ela matou parte do que me restava. Qualquer vestígio de sanidade se foi naquele momento. Vocês estão criando animais neste lugar, então é animais que terão.

Rumpel se aproximou do portão da cela e ajoelhou para ficar da minha altura. Agora me encarava profundamente, com um olho cego, decorado por uma cicatriz da sobrancelha até a parte de baixo da pálpebra, e o outro de um intenso azul, refletido pela pouca luz vinda da janela.

— Quando eu era mais jovem e mais solitário, costumava andar pelos jardins das instalações escondido. Ia além do permitido. Em uma dessas escapadas, presenciei algo totalmente desagradável. Dois caçadores assassinando brutalmente um lobo selvagem, segurando facões de caça. Sorriam orgulhosos, como bravos guerreiros. Um deles estendeu sua arma para o alto e deu o golpe final, decapitando todos os membros da criatura.

"Em seguida arrastaram o resto do cadáver até o acampamento donde estavam, deixando pelo caminho um rastro de sangue imensurável. Eu poderia ter corrido de volta para o orfanato. Mas fiquei parado, traumatizado demais com as cenas se repetindo em minha cabeça. Então das sombras de uma arvore, vi saindo um filhote de lobo timidamente, que cheirava os pedaços decapitados cobertos de sangue. E aí percebi o que de fato havia acontecido."

"Era só uma mãe protegendo seu filhote de estranhos. O instinto mais admirável de qualquer ser vivo. E aquele filhotinho apareceu e rodeava o cadáver da mãe. Claro que ele já deveria ter notado que ela não iria mais levantar. Imagino que você saiba que destino teve este filhote" — E acariciou novamente o lobo que encostara a seu lado — Foram anos de árduo treinamento para tirar o medo que ele sentia das pessoas. Isto me custou um olho e algumas cicatrizes pelo corpo. Hoje, o predador selvagem que está vendo, tornou-se um verdadeiro guardião, que se porta mais que muitos humanos que conheço — Tornamos o silencio importante por alguns segundos — Não criamos animais aqui, Pandora.

"Eu não tive conhecimento em relação a sua cachorra, até de fato acontecer. Quero que entenda, que por mais que sigamos rígidas regras neste orfanato, nunca aprovarei o que Pompoo fez" — Passou seu braço pela fresta da grade e apoiou sua mão em meu ombro — Ainda sim, não posso fazer nada para mudar isso, me desculpe — Rumpel encerrara seu monologo e se distanciara, levantando-se e dirigindo-se para a saída. Antes que fechasse a porta do corredor, olhou uma ultima vez para mim e disse:

— Reflita mais. 

 

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.
II - Rebelião dos IrrecuperáveisWhere stories live. Discover now