3. Preconceito

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O Lutador Verde era um vigilante sagaz que colocava uma máscara, vestia uma roupa justa que deixava os músculos em evidência e pulava pelos telhados dos prédios em busca de justiça

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O Lutador Verde era um vigilante sagaz que colocava uma máscara, vestia uma roupa justa que deixava os músculos em evidência e pulava pelos telhados dos prédios em busca de justiça. Nada muito original até eu descobrir que ele lidava unicamente com crimes contra LGBT's.

Li sobre a sigla que englobava Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais em uma das histórias de Damien e lembro de ter pesquisado no Google e encontrado termos como LGBT+, LGBTQ, LGBTQIA, LGS... Cada minoria querendo sua parcela de representatividade. Sempre imaginei que tantos desmembramentos apenas complicavam as coisas e deixavam as pessoas com preguiça de compreender o assunto. Mesmo assim insisti em aprender e nas leituras das histórias do meu filho descobri um novo mundo. Algo que eu acompanhava de longe.

— Não acredito que ainda está aí – esbravejou Judith, entrando no quarto sem bater e me encontrando deitado em meio aos papéis.

Minha ex-esposa ainda tinha a chave do apartamento e as visitas surpresas eram constantes. Quando viu meu estado deplorável ela não se surpreendeu, apenas saiu pelo quarto recolhendo as roupas do chão.

— Preciso mesmo de ajuda aqui, Jonas. Minha mãe está a caminho, tia Lauren vem de longe para acompanhar o velório e todos os filhos dela vão se hospedar na minha casa! Um monte de parente folgado, que só perturba ao invés de buscarem um maldito hotel!

Sabia que aquele era seu jeito de lidar com as coisas. Judith precisava se manter atarefada para não desabar, mas a qualquer momento os afazeres terminariam e ela cairia no choro.

Não tirei os olhos da história enquanto ela tagarelava.

— Sabia que Damien criou um herói que mata homofóbicos? – questionei.

— Se ele mata não podemos chamá-lo de herói. Podemos?

— Não sei, acho que tudo bem livrar o mundo de vilões – passei uma página enquanto conversávamos. – O Lutador Verde sai por aí e acaba com os que tentam machucar gays.

— Um herói só para gays parece preconceituoso. Se ele ver um hétero sofrer um assalto não iria ajudar? – Ela foi até o guarda-roupas e selecionou meu figurino para o enterro – E como ele sabe quem é gay? Tem algum teste? Porque se não, eu fingiria que sou sapata só para ser salva.

— Se me deixar terminar de ler posso descobrir isso tudo – reclamei.

— Pois ande logo! – Ela jogou as roupas na minha direção – Se mexa, porque estou farta de fazer tudo por aqui. Trate de tirar esse band-aid horroroso da testa.

A porta bateu forte quando Judith me deixou. Como sempre, fiz o que ela disse e tirei o band-aid. Depois disso quis voltar à leitura.

A história era instigante, passei horas entretido e de alguma forma conseguia entender e aceitar as motivações do personagem. Tudo seguia uma linha de raciocínio muito boa, as ações do Lutador eram bem calculadas e, quando cheguei nas últimas páginas e vi que não existia um final, fiquei angustiado para saber como seria a conclusão.  A curiosidade me fez voltar algumas páginas e reparar algo na aparência do protagonista. A sobrancelha falhada e o queixo quadrado eram características do meu rosto.

Sorri, sem graça.

— Eles se inspiraram em mim – e fiquei um tanto orgulhoso. – Eu sou o Lutador Verde.

Meus dedos foram automaticamente para o celular e procurei pelo grupo com os contatos da escola. Yuri estava entre eles. 

Me perguntei se deveria apenas mandar uma mensagem, mas tinha vontade de falar com alguém que teve as mesmas emoções que eu ao se deparar com aquela história. 

— Alô? – a voz do garoto surgiu ao segundo toque.

— Sou eu, Jonas.

— Ah! Oi, professor. Está tudo bem?

— Sim, está, eu só queria conversar com você.

Olhei para a capa da história em quadrinhos e imaginei o que passava pela cabeça de Damien quando começou aquilo. De todos, aquele era seu melhor trabalho. 

— Quero te fazer uma pergunta: Se o Lutador Verde se deparasse com um homem heterossexual apanhando na rua, ele o ajudaria?

— Uau! É uma ótima pergunta – ele fez uma pausa, pensativo. – Na verdade, acho que depende. Ele não é o tipo de herói que ajuda todos. É um homem que protesta contra o que o país faz com os LGBT's, mesmo não sendo gay nem nada. Sabia que a homofobia não é considerada crime pelo nosso código penal?

— Não, eu não sabia.

— Por isso ele só ajuda quem pertence àquele grupo. Isso gera debate. Se salvar um heterossexual impedisse as pessoas de verem isso, então ele não o salvaria.

Entendi o que Yuri queria dizer com aquilo. Acho que ter um herói que salva somente homossexuais dava força aos LGBT's.

— E como ele descobre quem é gay e quem não é?

— Isso é bem simples. Da mesma forma que um homofóbico descobre.

O tom de voz de Yuri dizia tudo.

Aquelas palavras me fizeram pensar quando me dei conta de que meu filho não se interessava por mulheres. Acho que foi bem antes dele me contar, quando ainda era criança e mostrava uma sensibilidade maior que outros meninos. Quando ele chegou à puberdade percebi que seus olhares não iam para as moças que passavam perto. Damien tentava disfarçar, mas seu interesse sempre seguia na direção oposta ao meu.

Respirei fundo e percebi que tinha ficado um bom tempo em silêncio. Yuri respeitou meu momento e percebi o quanto ele tinha sido atencioso até então. Foi por isso que optei por fazer a coisa certa dessa vez.

— O velório será às 17h – avisei, afastando as folhas de papel da cama – Posso te buscar meia hora antes?

Ele gaguejou. Respondeu que sim e agradeceu de uma forma terna. 

Antes que mudasse de ideia desliguei o telefone e organizei os papéis. Não sabia se fazia bem em convidar Yuri para o enterro, mas ele merecia se despedir de Damien. Era o mínimo que eu poderia fazer.

Quando a hora passou tomei um banho, me arrumei e vesti a roupa que Judith separou. Fiz a barba e passei gel no cabelo para ficar com uma aparência mais aceitável. Fazia tempo que não dirigia, talvez por conta da bebida, mas peguei as chaves do carro e cumpri a promessa de buscar o garoto. Quando me viu chegar, Yuri correu até o carro e analisei sua camisa preta de manga comprida, a calça da mesma cor e o sapatênis. Não eram vestes para um velório, mas pelo menos não era nada inapropriado. A blusa não tinha estampa e por mais que o visual fosse jovial ele não chamaria tenção. Fiquei aliviado por isto.

— Será rápido, não precisa conversar com ninguém e fique sempre ao meu lado, entendeu? – quis explicar – Se perguntarem sobre você, sei lá, diga que é um amigo da família.

— Tudo bem – ele pareceu constrangido – Obrigado por me deixar vê-lo. É importante para mim.

Ouvir aquilo me causou desconforto. Observei meu aluno, a forma como ele suava e tentava se livrar do nervosismo. Parecia um bom garoto, talvez uma boa companhia para meu filho.

Quando chegamos ao cemitério pedi que ele fosse na frente e me esperasse no saguão. Fiquei no carro e tentei tomar coragem para seguir adiante. Sem pensar muito, peguei o celular e acompanhei a queda do meu filho mais uma vez, ouvindo as vozes das pessoas incentivando-o.

Na minha mente, se eu fosse o Lutador Verde iria atrás de cada um que disse para ele pular.

Lutador VerdeWhere stories live. Discover now