Prólogo

124 10 2
                                    

"A raça humana encontra-se no fim da linha, exatamente onde seus passos a levaram.

Não é a primeira vez que isso acontece, mas é a pior.Talvez por já ter errado tantas vezes. Talvez por não ter aprendido em nenhuma delas.Parece sempre esquecer as dores e as lições que se escondem por trás das guerras, revoltas, holocaustos e desastres retratados em seus livros de história.De qualquer forma, desse erro não poderão ser culpados novamente, pois não sobrará ninguém para se lembrar."


Olhando de fora e de muito, muito longe, é quase possível pensar que a Terra é a mesma, ainda que o azul não seja tão abrangente, ainda que a vida não clame. Isso porque a vida existe. Fraca, frágil, fragmentada e no limite de suas próprias escolhas, mas viva.

Estranho é, contudo, constatar que algo obscuro e sombrio envolve o planeta. Não é uma luz diferente, uma nova camada de gás, não é uma redoma. É sua própria respiração, é a áurea que transborda de sua própria existência e reflete o que existe em seu interior.

Quem quer que toque o que sobrou, sentirá a mão calejar; quem quer que inspire longamente, sentirá o cheiro de lágrimas e suor; quem quer que escute, ouvirá os lamentos e as súplicas, e quem quer que veja, enxergará no planeta e nos rostos as rachaduras de toda uma eternidade de falhas.

O que mais aflorará, entretanto, será o gosto amargo que inundará a boca. O sabor da saudade da água que molha a garganta e mata a sede, o sabor da ausência de sabores. O sabor do arrependimento.

É evidente, por outro lado, que resistem belos lugares, sons agradáveis, cheiro de comida farta. Nem mesmo o homem, em toda sua racionalidade, sabedoria e ignorância, poderia extinguir absolutamente tudo de bom que há desde muito antes de seu primeiro nascimento.

É evidente também que o que sobrou foi isolado! Como poderiam os seres humanos arriscar que toda a riqueza restante no mundo fosse explorada até o fim pelos sobreviventes? Não, de maneira alguma. O verde, o azul, o amarelo, as vidas e as cores que as representam estão a salvo para serem exploradas, não por todos, mas somente por alguns.

Que morram todos, mas que eu seja o último dentre eles, devem pensar.

E assim o fizeram, após guerrearem por raça, por território, por água, por bens, após guerrearem por guerra, após tempestades, erupções, terremotos, furacões, doenças, bombas e tantos outros desastres, naturais ou não.

Mas a vida é insistente, já disse algum admirável sábio. Ela sempre encontra meios para voltar, para permanecer. Ainda que alguns bilhões de falecimentos tenham ocorrido, que algumas centenas de milhares de quilômetros de terra tenham desaparecido, o que sobreviveu fincou suas raízes no chão e firmou-se para ficar.

Porém, mesmo a vida, força grandiosa, antiga e incomparável, pode sucumbir frente a incontáveis erros e más escolhas. É neste limite, nessa tênue linha que separa a vida de sua ausência, que estão os humanos sobreviventes.

O problema é não enxergarem que não somente a morte é que mata. E que ela, assim como a vida, pode ser alimentada aos poucos.

Alguém que visse esse mundo hoje pela primeira vez, poderia perguntar como as pessoas puderam aceitar tal transformação, como não brigaram, protestaram, espernearam ao avistar as muralhas que cresciam entre eles.

Estes mesmos poderiam, aliás, fazer pergunta semelhante no tocante ao amor.

Tal como apaixonar-se, uma mudança de tamanha proporção não se dá em um piscar de olhos. É, na verdade, como um barco que navega, deixando-se guiar pelo sopro do vento, dia após dia, e em cada segundo que se passa entre eles, há tempo sufi ciente para que se mude a direção.

E nesse mar, a humanidade tem navegado há muito tempo e mesmo após diversos alertas, nunca ao menos pensou em alterar seu rumo.

E agora terá sua última chance de fazê-lo, visto que o barco finalmente foi forçado a parar. Ele encontrou um limite, um abismo e este não poderá ser ultrapassado, a menos que se deixe de construir muros e se passe a construir pontes. O momento de decidir é quase chegado.

Por ora, a humanidade vive isolando-se em grupos que insistem em procurar diferenças que justifiquem suas diferenças, enquanto ignoram qualquer similaridade que poderia uni-los.

São ordinários e singulares, como decidiram chamar. São pessoas que parecem não notar que vivem em um mesmo planeta exausto.

Se são felizes? Não. E se por algum motivo tem a falsa impressão de que a resposta para essa pergunta é afirmativa, estão prestes a deixar de ser.

E por que chegaram a esse ponto? Por que outras tantas guerras? Por que tanta destruição? Por que desistiram das árvores? Por que não há água para todos?

Sinta-se à vontade para listar todos os questionamentos, mas se desfaça da esperança de que qualquer resposta será dada.

Ninguém pode afirmar o que aconteceu muito antes, ninguém pode afirmar o que acontecerá depois.

Talvez tudo isso tenha ocorrido por algum ato seu... ou quem sabe por alguma omissão sua. Talvez ainda você seja a chance de mudar a direção. Mas o fato é que o vento continua soprando e empurrando esse barco.

E por enquanto, somente por enquanto, ainda há mar a ser navegado.

Sombras do MedoWhere stories live. Discover now