Capítulo 19

8 0 0
                                    

Amanda abriu os olhos, mas a escuridão era tão densa que não fazia diferença tê-los ainda fechados. Forçou-se a retirar os pensamentos do sono inquieto em que estivera mergulhada e focalizá-los na realidade. Que horas seriam?

Sentou-se na cama e tentou acalmar o coração. Havia despertado de um pesadelo. Era tudo. Enquanto voltava completamente a si, percebeu que tremia. Tocou-se surpresa e percebeu que sua pele estava gelada.

Com o coração novamente pesado, levantou-se da cama, e ao fazê-lo, sentiu como se um soco tivesse acertado seu peito. Instintivamente puxou o ar. Que dificuldade para respirar era aquela? Será que ainda estaria sonhando?

Tateando no escuro, seguiu sem ao menos pensar para o quarto de Anabele, de frente para o seu.

Inclinou-se, respirando pesadamente, sobre a estreita cama e levou a mão sobre a parte superior.

Encontrou apenas o colchão.

— Anabele? — gritou Amanda, quase sufocando, embora já não soubesse se por conta do pânico que de repente a atingira, ou pelo fato de estar o ar quase palpável.

— Anabele?

Lá de fora veio um grito aterrorizante. Agudo, ardido, estridente e sobrenatural.

Como resposta, outro ainda mais alto.

Isso era novo, pensou Amanda. Não sabia porquê, mas podia jurar que os gritos vinham de diferentes fontes.

Correu desesperada, gritando ainda mais alto por Anabele. Não, não. Não podiam tê-la levado. Que a levassem, mas não a filha!

— Anabele? Amanda? — Uma voz muito grave e familiar irrompia da sala, por cima do barulho da porta sendo empurrada fortemente contra a parede.

Vincent, por toda a água do mundo, que bom que estava ali! Amanda chamou em resposta, mas não tinha certeza se teria sido ouvida, pois mais gritos, muitos outros, vinham de fora.

Percebeu, com o medo atingindo-a brutalmente, que muitos deles eram de pessoas, pessoas como ela. Ouviu então uma explosão ensurdecedora e caiu ao chão, cobrindo os ouvidos com as mãos.

Vincent alcançou-a nesse momento e levantou-a. Ficou em pé e distinguiu o rosto do homem que considerava como um filho a sua frente. A escuridão não era mais total, percebeu. Já estava na sala e da janela, iluminação inundava o lugar. A luz dançava, avermelhada, ao som de gritos e explosões.

— Anabele não está aqui, Vincent. Onde está minha fi lha? — perguntou, com a voz embargada.

Uma sombra cobriu seu rosto e Amanda percebeu as sobrancelhas dele contraindo-se, sinal de seu pânico. Sua voz, contudo, ainda estava firme quando disse:

— Se ela não está aqui, nós a encontraremos lá fora, Amanda.

Vamos, precisamos sair.

Ela segurou seu braço.

— Sair para onde, meu filho? O que está acontecendo? — gritou, tentando fazer-se ouvir sobre toda a confusão que vinha lá de fora.

Um grito absurdamente alto quase fez com que seu coração parasse.

Não, nenhum daqueles desesperados gritos eram de Anabele. Mas onde estaria ela?

Olhou então de relance para a janela e viu algo aterrorizante. Amanda podia jurar que se tratava de fumaça negra e tóxica, mas se movia lenta e ordenadamente em sua direção. Percebeu que fosse o que fosse, era aquilo o que a fazia ter difi culdades para respirar. Estava paralisada, sentindo os pulmões serem esmagados. Podia ver sua respiração escassa como se estivesse em meio a um deserto de gelo. Sentiu a mão de Vincent fechar-se em volta da sua e deixou-se arrastar.

Em poucos instantes, estavam paralisados do lado de fora, assistindo ao que só podia ser um circo de horrores. Não, estava ainda mergulhada em um pesadelo, era evidente. Que outra explicação poderia haver para toda aquela fumaça articulada e fogo que fazia seus ossos congelarem?

Pessoas corriam histericamente, com menos direção do que a própria nuvem negra que saía das chamas e, essas estavam por todos os lados, altas e imponentes.

A noite estava clara como nunca antes.

Que ironia, nunca quisera ir para o inferno, e agora tinha certeza de que não precisaria. O inferno tinha vindo até eles.

Despertando do transe em que estivera, olhou a sua volta, procurando pela filha. Ela e Vincent deram alguns passos, alcançando a rua e se misturaram ao mar de pessoas que corriam, fugindo do desconhecido em direção a lugar nenhum.

Começaram a chamar pelo nome da moça, mas Amanda logo percebeu que era inútil. Não conseguia escutar a própria voz em meio à agonia coletiva e aos estranhos gritos, que ainda não sabia de onde vinham. Todas as vezes em que o haviam escutado, tinham sentido um medo crescente e desmaiado em seguida. Dessa vez, entretanto, sentia-se muito desperta. Conseguia perceber que os gritos realmente não eram humanos. Eram altos, irritavam os ouvidos e eram quase nojentos.

Um prenúncio de morte, pensou, com um arrepio percorrendo a espinha. Olhou para o céu escuro, de onde parecia vir a algazarra. Não podia ver nada de diferente. As estrelas ainda pareciam distantes e em paz.

Notou então que Vincent ainda chamava por Anabele. Parou a sua frente e agarrou seu rosto com as duas mãos.

— Meu filho, ela não pode nos ouvir aqui. Vamos encontrá-la, eu sei, mas não dessa forma.

Os olhos do amigo estavam inundados de preocupação. Amanda sabia, desde sempre, que Vincent era apaixonado por sua fi lha. Anabele, por sua vez, nunca se atentara ao fato. Esse era um dos motivos que o fazia amá-la sempre mais um pouco, acreditava. A inocência e a força da filha a tornavam possuidora de uma personalidade singular. Mesmo ela, como mãe, por vezes tinha vontade de abraçar a Anabele que parecia uma menininha e protegê-la contra todos os males do mundo. Em outras tantas, tinha vontade de buscar conforto na Anabele madura, justa e bondosa que havia se tornado.

Se havia acertado em alguma coisa na vida, havia sido com ela, embora sempre tivesse achado que a fi lha tinha algo de especial, por si só.

Bom, era mãe. Sua opinião era no mínimo duvidosa, e naquele momento não tinha outra preocupação que não encontrar Anabele. Entender tudo aquilo não era prioridade.

Cobriu a cabeça com as mãos, instintivamente, quando escutou um estouro. Em resposta, novos gritos de pessoas ainda mais assustadas e o estranho berro que parecia agora estar mais perto. Lembrava uma gargalhada: estridente, amaldiçoada e que vinha de alguém ou alguma coisa que se divertia com toda aquela desgraça.

Ainda respirando pesadamente, falou o mais alto que pode muito próxima de Vincent:

— Se Anabele saiu sem nos esperar, só pode ter sido para socorrer alguém que precisaria muito.

Uma luz de compreensão e esperança iluminou o rosto manchado de fuligem de Vincent.

Sem dizerem nada, deram as mãos e começaram a correr, empurrando quem estivesse no caminho, em direção à casa de dona Alice.

Sombras do MedoWhere stories live. Discover now