Capítulo 6

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Nicolas estava sentado sobre o degrau  da porta de sua casa. As pernas estendidas à sua frente ainda estavam cobertas pelo uniforme azul marinho dos militares das capitais. Mastigava uma maçã, enquanto observava o pôr do sol. Mesmo com o céu já alaranjado, com a despedida da estrela brilhante, o ar continuava quente e parado.

O comandante enxugou a cabeça raspada que suava e arremessou o restante da fruta para bem longe.

Sentia-se cansado, mas não podia negar que o dia fora bastante calmo. É verdade que acontecera de novo. O estranho grito, o estranho frio e o estranho apagão. E claro, o estranho desaparecimento. Nicolas não conseguia esquecer-se da expressão de absoluto terror que vira no rosto daqueles ordinários. A ideia de que, se não houvesse sido arrastado por um amigo para se alistar há muitos anos, seria ele a viver do lado de fora das muralhas, causou-lhe um calafrio. Poderia ser ele a perder um ente querido nos tempos escuros que viviam. Não que tivesse algum.

Mas as ordens eram claras, ele bem sabia. Somente ordinários estavam desaparecendo, e, portanto, não havia motivo para agir. Seja lá qual fosse a razão, mais uma vez os singulares estavam em vantagem. Do lado de dentro da muralha, estavam protegidos. Ainda assim, Nicolas gostaria de entender o que estava acontecendo.

Em algum lugar dentro de si mesmo, uma vontade irritante de ajudar aquelas pobres almas o incomodava, porém a vontade não era grande o suficiente para fazê-lo se mover. Além disso, se Arthur ou Marcus descobrissem qualquer ajuda aos ordinários vindo dele, um militar de um dos pelotões, que tinha uma casa, água e energia à vontade, provavelmente teria o destino reservado à classe mais baixa. Talvez um ainda pior, já que estaria descendo voluntariamente.

Além disso, já havia perdido o controle e acertado aquele ordinário. Sabia que o gesto poderia ter certas consequências desagradáveis, mas não pudera evitar. E bom, também não se arrependia.

Henry merecia. Irritava-lhe profundamente sua falsidade.

Nessa noite, contudo, não era a reprimenda que seu soco podia gerar que lhe atormentava.

O fato é que Nicolas não conseguia evitar pensar que, quanto mais estranhos os acontecimentos se tornavam, menos trabalho ele, enquanto militar, tinha.

Além de distribuir as cotas de água para imensas filas e de comandar a distribuição de comida e corpos, suas tarefas se resumiam à vigilância. E a vigilância parecia oferecer cada vez menos motivos para preocupação. Os ordinários estavam cada vez mais apáticos e desanimados. Suas forças pareciam todas usadas para ficarem em pé. Não sobrava, portanto, força alguma para lutarem, ou mesmo para reclamarem.

Quanto mais os singulares tiravam dos ordinários, menos esses tinham para oferecer.

Nicolas suspirou e levantou-se decidido a caminhar uma última vez ao longo das muralhas, antes de voltar para o conforto de sua vida solitária.

Passando pelo estreito corredor que separava as enormes paredes dos fundos do palácio da terceira região, observou a saliência que se destacava na parte de baixo do muro. Duas pequeninas fendas escuras e paralelas, unidas por uma terceira vertical. Discretas aos olhos de qualquer um que não soubesse o que significavam. Nicolas chutou o local antes de continuar caminhando.

A capital era realmente bonita, observou, olhando ao redor. Sempre gostara de passar algumas horas olhando as árvores, o lago e até mesmo a mansão em que o líder vivia, mas naqueles últimos dias, nem mesmo estas familiares e agradáveis visões conseguiam transmitir-lhe paz. Tinha um constante e desconfortável pressentimento. Sentia, de uma maneira inexplicável e assustadoramente segura, que nem mesmo as imensas muralhas poderiam protegê-los.

Suspirou e deu de ombros. Pelo menos tinham armas, granadas e munição. Pensando bem, o que poderia ser mais forte do que isso?

— Boa noite — cumprimentou um dos soldados, que passaria a noite vigiando o portão da capital.

Nicolas cumprimentou-o com um aceno da cabeça.

Parou em frente aos portões e olhou para fora, em direção à província. Era o mesmo lugar e ao mesmo tempo outro completamente diferente.

Avistou a garota que já havia visto algumas vezes na fila para pegar água, mas cujo nome não sabia, e também não lhe importava, caminhando com alguém. O jovem loiro, o homem que sorria o tempo todo.

Ele, pela segunda vez em seu dia. Suspirou, mas não estava disposto a gastar mais do que um segundo pensando nesse problema.

— Coitada da menina — limitou-se a sussurrar para si mesmo, observando a garota afastar-se do rapaz. Nicolas deu, então, um passo em direção à sua casa, mas parou no lugar, rígido e incapaz de mover-se.

De um minuto para o outro, o ar quente e sufocante tornou-se gelado e ainda mais asfixiante. Era quase tóxico. O ato de respirar, comum e involuntário, realizado inúmeras vezes por minuto, por horas e por uma vida, ato que não se nota tão intrínseco é ao próprio conceito de viver, transformou-se em verdadeira tortura. O peito ardia com o esforço para obter ar, com o esforço para tê-lo e ao mesmo tempo para que não fosse necessário. Era preciso respirar, mas fazê-lo tornara-se incrivelmente doloroso.

A inspiração, antes esquecida, tornara-se o centro do mundo. Nicolas notava cada movimento do seu próprio peito.

Enquanto lutava contra seus próprios sentidos na tentativa desesperada de controlá-los, para que pudesse agir em busca da causa do inexplicável frio, sentiu o mundo desacelerar ao seu redor. Seu coração não parecia bater no ritmo certo.

Mas então, tão súbito quanto foi o surgimento da sensação de que o ar os esmagava, foi o seu desaparecimento.

Nicolas sentiu o sangue voltar a aquecer suas veias e o peito subir lentamente.

Encarou o lugar a sua volta confuso, sentindo todo e qualquer pelo de seu corpo eriçar. Não era mais frio o que causava o arrepio na espinha, o congelamento dos seus ossos. Era o medo do desconhecido, do inexplicável, de seus próprios erros.

Se esperava que o fim do estranho acontecimento traria alívio, não poderia estar mais enganado.

Sombras do MedoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora