Capítulo 31

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Nicolas estava sentindo muitas coisas naquele momento, mas por mais incrível que pudesse parecer aos olhos de seus subordinados, surpresa não estava entre elas. Ele convivia há muito tempo com os singulares para esperar qualquer atitude diferente. O fato de estarem virando suas costas a seus próprios "semelhantes" era, na realidade, bastante típico.

O comandante nunca tivera qualquer ilusão a respeito do possível comportamento dos singulares em tempos de conflito. Tinha total consciência de que fechariam as portas para quantos fossem necessários para que pudessem sobreviver.

É verdade que ele também era um singular, mas o era apenas porque prometera servir; era porque precisavam dele, precisavam que desse sua vida para proteger a deles.

Nicolas não tentava se enganar, contudo; não era nada melhor do que quaisquer um dos outros singulares, fazia parte daquele sistema sujo e totalitário e mesmo assim era capaz de colocar a cabeça à noite sobre o travesseiro e adormecer rapidamente.

Houve sim uma época em que os fantasmas dos ordinários a quem negava comida e água o visitavam depois que a escuridão caía, um tempo em que sentira culpa, mas havia aprendido a conviver com ela.

Estava disposto a mudar? Não. Estava disposto a renunciar o conforto e segurança que tinha para ajudar um ou outro ordinário que acabaria definhando cedo ou tarde? Não, não estava. Decidira então não ser hipócrita e não chorar a morte deles.

Nicolas assumira um lado, e era maduro o suficiente para assumir também a sua escolha. Talvez por isso mesmo Henry, Davi, ou fosse lá como o filhinho do presidente preferisse ser chamado, o irritasse tanto. Agora estava ele convenientemente preso do lado de dentro das muralhas, enquanto a menina com quem se envolvera fora deixada do lado de fora com um coração partido e com uma carga dramática com a qual teria que lidar caso sobrevivesse. Lembrando que essa hipótese não parecia muito provável, embora fosse visível o quanto ela se agarrava à vida.

Admirável fora a atitude da tal Anabele. Ela sim conseguira surpreendê-lo. Fora esperta, corajosa, e talvez um pouco ousada em arriscar-se falando com o grupo de soldados. Nicolas podia apostar que pelo menos metade daqueles homens a matariam sem hesitar, sem qualquer motivo aparente, ou somente porque podiam fazê-lo.

Homens são realmente estúpidos, concluiu. Se sobrevivesse àquela noite, ele é quem deveria repovoar o mundo, porque, honestamente, os outros que conhecia iniciariam outra geração fadada a mais um fracasso.

Seus soldados ainda estavam indignados com os singulares que os haviam abandonado ao perigo da província, e pareciam incapazes de reagir. Irritado e notando o voo das bizarras criaturas, percebeu que não poderia perder mais nem um segundo.

— Calem a boca e me escutem! — berrou. Enquanto o silêncio se instalava, viu Anabele gritando adiante orientações aos ordinários perdidos e assustados. Não seria ruim tê-la em seu pelotão, concluiu. — Os singulares não vão mais abrir a porcaria daquele portão! E não sei se vocês perceberam, mas aqueles monstros voam, e estar ali dentro não vai salvar ninguém! — Encarou os soldados em silêncio e caminhou entre eles. — Não tenho tempo para ser psicólogo de vocês, e nem tenho o interesse, então se quiserem f car chorando como crianças mimadas, deixem suas armas para quem quer lutar e viver!

— Estou com o senhor — respondeu um jovem magrelo e de feições duras. — Mas não temos armas o suficiente. Saímos somente com o que tínhamos no corpo.

Nicolas assentiu, mas gritou, perguntando ao grupo:

— Estão todos comigo? Sim ou não? Querem uma chance para viver?

Um vigoroso e uníssono "sim" emergiu do grupo.

— Pois bem — encarou o soldado que o questionara. — Existem armas aqui na província.

— Isso é impossível! — Alguém retrucou.

— Vocês não prestam atenção em nada? — respondeu Nicolas, de mau humor. — O filho de Arthur viveu durante meses do lado de fora das muralhas. Acham que ele seria abandonado aqui sem um verdadeiro arsenal ao seu alcance?

Os rostos amedrontados pareceram iluminar-se com um ligeiro lampejo de esperança.

— Vou armá-los até os dentes, e vocês vão matar muitos Venoms para mim. Estamos entendidos?

Outro furioso "sim" se fez ouvir.

— Então acho melhor começarmos logo... porque aí vem um deles.

Sombras do MedoWhere stories live. Discover now