Episódio 03 - Dranô: A Cidade em Chamas

47 7 115
                                    

A lembrança mais antiga que eu tenho é do mundo em chamas. Eu me lembro do exato momento em que acordei em meus aposentos, ainda pequeno, no meio daquele fatídico ciclo lunar com a agitação tão atípica na minha cidade de origem. Das ruas vinham gritos de desespero. A luz azul do luar que costumeiramente penetrava as vidraças nos períodos escuros, naquele momento deu espaço ao amarelo intenso das labaredas que tomaram as casas vizinhas.

Eu só entendi o que estava acontecendo quando meus ouvidos foram invadidos pelos pesados passos dos Executores da Nação Exilada com mesma violência com a qual invadiram a minha casa. Minha alma estremeceu. Eu me lembrei das histórias que nos contaram da ameaça feita em Verídia, e depois sobre o grupo de extermínio altamente eficiente que dizimava pequenos vilarejos pela nação. Eu me lembro da sensação de paralisia. Viver em Astandor me passou a falsa impressão que de alguma forma estaríamos protegidos, nós éramos uma cidade de grande importância para a nação, afinal. Mas aqueles passos eram o prenúncio da tragédia, ouvi-los dentro da minha casa me mostrou o quão enganado eu estava.

Comecei a pensar que apesar de estar fechado em meus aposentos a morte aguardava ao lado, e eu estava certo. As grossas paredes de madeira não me impediram de ouvir os gritos da minha mãe, eu me lembro, ela clamava pela vida de seus filhos. Eu me lembro do medo que senti, me lembro de me encolher embaixo da janela em uma tentativa fútil de permanecer o mais distante possível da porta, nutrindo com inocência a esperança de que toda aquela violência cessasse. Eu ouvi um último grito de suplico e o silêncio enfim se fez presente dentro de casa, desta vez ela clamou pela própria vida.

Ali, tremendo no chão, pressionando as costas contra a parede de madeira meu medo se transformou em horror. A medida em que os instantes de silêncio seguiram, meus pensamentos começaram a se organizar e passei a ter a dimensão da brutalidade do que estava acontecendo. Todos os meus sentimentos se traduziram em um choro de lamento compulsivo e profundo. As lágrimas vieram em partes do medo e da vulnerabilidade aos quais eu me sentia exposto, mas foram causadas principalmente pela dor de entender que aquela foi a última vez que ouvi a voz da minha mãe.

Por alguns instantes tudo o que ouvi foi o som dos meus soluços, baixinhos e contidos em uma vã tentativa de me manter imperceptível. O pedido de clemência silenciado pela vida findada de maneira brutal não se sobrepôs à negação. A certeza deu espaço à fantasia, eu queria me apegar à ideia de que a ela fora concedida misericórdia. A quietude, no entanto, durou pouco. Os mesmos passos que anunciaram a sentença de morte da minha mãe voltaram a ecoar pelo ambiente trazendo novamente aquela mensagem aterradora. Talvez eu devesse fugir, talvez eu devesse me lançar pela janela e deixar a casa para tentar a minha sorte pelas ruas em chamas, mas uma dúvida surgiu e sua natureza era tão pura quanto o sentimento de preservação pelo próximo que alguns de nós possuímos. Me ocorreu que minha irmã, Cora, ainda poderia estar por lá em algum lugar.

Eu não sabia quais eram as circunstâncias, não sabia se àquela altura ela já teria se tornado outra vítima ou se estava escondida tal como eu, mas uma coisa era certa: nós havíamos perdido muito ali. Ela e eu. Se ela estivesse viva, os pesares daquela experiência seriam carregados por ambos nas eras que nos restavam. Diante daquele pensamento eu abandonei a ideia de deixar a casa naquele momento. Eu não sairia dali sozinho. Ela era tudo o que eu tinha a perder e então, apesar do luto por minha mãe, por Cora eu consegui reunir forças para me levantar. Me escorei na parede até conseguir firmar ambos os pés no chão, garantindo que o peso da situação não me fizesse desmoronar novamente.

Após ficar em pé comecei a caminhar lentamente até a porta, a essa altura pouco se ouvia das ruas que ardiam pelo fogo. A cada passo que dava eu ouvia o Executor caminhando pelo outro cômodo, aparentemente havia apenas um e eu não tive a certeza sobre a direção para a qual ele seguiu. Eu não sabia o que faria ao chegar na porta, eu não tinha um plano, mas sabia bem que entregaria a minha vida se isso desse à minha irmã alguma chance de se salvar. Agora, ao compartilhar estes pensamentos eu entendendo o quão egoísta foi meu sentimento naquele momento, pois apesar da pretensão de salvar a vida da minha irmã, eu também pensei que levar para o túmulo o peso e os traumas daquele ciclo lunar seriam bem mais fáceis do que carregá-los pelo resto da vida. Involuntariamente eu lancei sobre Cora toda a responsabilidade em lidar sozinha com a perda da própria família.

AcallaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora