Episódio 18 - Origens IV

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Neali tomou a pequena princesa inconsciente em seus braços e a apertou contra o peito. Em segredo, o líder tirano permitiu que algumas poucas lágrimas lhe escapassem se rendendo à humanidade que ele raramente expressava mesmo em seus momentos mais íntimos. Nada se comparava ao seu amor fraternal por Liera, talvez apenas o temor que ele sentiu ao perceber que perderia a única pessoa que realmente importava no mundo, sua única família.

O regente convocou mentalmente o ancião da cura juntamente com seus servos. O curandeiro ficou encarregado de reverter a magia enquanto o rei se voltou contra os próprios homens que falharam em defender o castelo da invasão. Por decreto real ele exigiu que a cada lua que as magias da cura falhassem em salvar a princesa, o contingente de soldados que serviram no castelo naquele ciclo lunar fosse reduzido um a um mediante à execução, e os que sobrassem ao fim do último ciclo seriam executados em sua totalidade junto ao líder das tropas acusado de traição.

No surgir da primeira lua uma cruzada pela nação foi comandada pelo próprio rei em busca da tribo do sangue, cidade após cidade em perseguição incansável ao grupo de espectros que pareceu nunca existir. A existência da tribo era conhecida pelos demais clãs, ainda que fraca e distante sua essência era sentida, mas suas práticas primitivas e reclusas os tornavam um enigma e seus rastros de energia pareciam não ter origem quando seguidos. As próprias aparições do ancião eram tidas como lendas e sua ausência na representação da Grande Nação reforçava o desprezo do grupo às culturas externas.

O segundo ciclo trouxe consigo a turves do julgamento. Mesmo a crueldade de Neali se curvava ao seu senso de moralidade e respeito estratégico aos aliados, mas a dureza de seu coração o guiou ao falso sentimento de que a nação estava contra ele. A ausência do sentimento legítimo de luto no coração dos servos da Grande Nação o fez crer que a população apoiava a retaliação. A terceira lua fez sua aparição no céu com o brilho ofuscado pelas chamas em um acampamento dos clãs ligados à nova ordem. Rumores levaram a armada real ao grupo acusado de acobertar praticantes das magias do sangue. Era conhecimento histórico que as magias sanguíneas não se propagavam como as demais e ninguém as praticava fora da tribo de origem, mas o rei estava rendido à dor e a dor ele desejava propagar. A negativa verídica foi tomada como inverdade, os elementalistas a serviço da nação cumpriram com a ordem do cerco com barreiras intransponíveis, a conjuração das chamas vitimou fatalmente os civis na grande fornalha que o lugar se tornou.

Antes que o sol aquecesse a Grande Nação o decreto da morte foi promulgado. A promessa real de que a nação pereceria junto com a princesa tornou aquele o ciclo mais longo. Semente alguma germinaria nas terras contaminadas pelas magias elementalistas e as águas se tornariam famintas com a performance da subversão. Fome e sede extinguiriam a vida com as maldições que seriam lançadas quando o sangue de Liera consumisse seu corpo. Os súditos conheciam a tirania do rei e temeram a escassez, refletindo a crueldade de seu governante a violência civil começou a fazer vítimas entre os membros das próprias famílias.

Com a mudança da estação o senso da falsa justiça floriu, as raízes da violência fizeram germinar o desejo da extinção de qualquer sentimento diferente da devoção pela vida da princesa. A consolidação do ideal que visava a purificação dos clãs apoiadores da coroa deixou de ser um assunto regencial e tornou-se um movimento social autônomo. As ruas infestadas pelo odor do sangue fizeram da nação um antro de morte. A banalização da vida privou as vítimas dos ritos sagrados, os corpos abandonados sobre a terra e sobre a relva das florestas encontravam seu repouso onde quer que houvessem caído quando suas vidas fossem brutalmente ceifadas por coletivos de justiceiros adoradores do rei.

As vítimas dos devotos agonizavam quando as águas abundantes regaram aquela terra. As chagas de Liera a fizeram sofrer e as magias da cura não a libertaram, elas sequer atenuaram a dor e Neali viveu aquilo como se ele próprio perecesse daquele mal. Mas o rei não se arrependeu. Nada naquela situação o fez refletir ou reconsiderar suas ações, havia certeza em seu idealismo e crença em sua verdade, a reação rebelde foi entendida como um atentado contra alguém que buscava a exaltação da única e verdadeira entidade superior. Não havia crime em seus atos quando cometidos em nome do verdadeiro Deus. A libertação da princesa fora atrelada à redenção do rei antes que as estações se repetissem. Neali, no entanto, sabia que havia algo mais. As magias do próprio ancião poderiam ser a solução. O rei jamais assumiria a representação do poder de divindades inferiores, associar-se às magias impuras nunca fora uma opção para ele. A melhor estratégia seria a coerção. Mas como coagir um clã que parecia não existir? A caçada e a vitimização em massa não renderam frutos e a tribo do sangue permanecia desaparecida. O rei sabia que algo os motivara, algo em suas ações os fizeram deixar o isolamento para interferir no mundo externo como nunca antes. Ele só precisava repetir os próprios passos e ter a sorte de trilhar o caminho certo.

AcallaWo Geschichten leben. Entdecke jetzt