Episódio 08 - Dranô: Dualidade

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- Está escurecendo, precisamos achar abrigo.

Eu ainda não sabia como responder. Na verdade, eu não queria responder nada a Tagi desde o momento em que fui salvo. O diálogo me forçava a revisitar o instante em que fui afastado da minha casa enquanto minha irmã morria nas mãos do executor.

- Aquela rocha parece grande o suficiente para nos abrigar, posso tentar abrir uma toca nela. O que acha?

Eu não respondi. Ela entendeu o recado e fez o que tinha que ser feito, performou a magia dos combatentes e potencializou sua força física. Um soco foi desferido contra a rocha abrindo uma espécie de caverna que nos serviu de abrigo.

- Eu vou procurar comida, se abrigue na caverna e tente acender uma fogueira se conseguir.

Tagi entrou na floresta escura com a mesma agilidade com a qual me tirou da cidade em chamas. Nós estávamos há vários ciclos perambulando pelas matas de Acalla, os crescentes ataques nos levaram a crer que nos afastarmos da civilização seria a melhor opção naquele momento. Meus sentimentos estavam bagunçados, Tagi me salvou e eu sabia que deveria ser grato, mas seu gesto de salvação também me condenou a carregar dor e culpa pela morte da minha irmã. Cora deveria estar viva no meu lugar.

Eu entrei na caverna improvisada naquela rocha que era grande e maciça, seu interior passava a segurança que precisávamos. Nós tínhamos alguns tecidos e peles de animais que caçamos pelo caminho, eu as organizei de forma que pudéssemos repousar nossos corpos cansados com um mínimo de conforto. Eu tinha certa ideia de como acender a fogueira, aquilo era conhecimento comum entre os não praticantes de magia. Localizei duas pedras grandes o suficiente para tentar produzir alguma fagulha com seu atrito. Eu estava na entrada da caverna e fiz um pequeno amontoado com mato e galhos secos que encontrei nos arredores, então, segurando firme as pedras comecei a bater uma contra a outra.

Encarar aqueles instrumentos enquanto eu fazia movimentos repetitivos fez minha mente voar. Os estalos das pedras se chocando me remeteram ao momento em que me deparei com aquele processo pela primeira vez, ainda na infância, quando Cora e eu estávamos tentando produzir fogo para o que quer que fosse. Eu estava feliz, talvez estivéssemos brincando de algo. Mais estalos e mais lembranças emergiram. Eu me lembrei do último momento em que vi o rosto da minha mãe, me lembrei de como ela estava mais animada do que de costume quando... quando nossa casa foi invadida.

Novos estalos e eu já não enxergava mais as pedras, as lembranças estavam tão vividas que me tomaram a visão. Me lembrei de novo daquele ciclo. Eu revi meu aposento, revi o momento em que acordei. Eu podia ouvir os passos dos Executores ali, sincronizados com as batidas das pedras. Meu coração começou a acelerar e a minha respiração ficou ofegante, o meu corpo reviveu a mesma sensação de perigo. Aparentemente, sobreviver a uma experiência de quase morte deixa sequelas que vão muito além de uma mente perturbada.

Eu não aceitava aquela situação, não aceitava aquela parte da minha história porque ela não deveria ter sido assim. Eu não a fiz assim e era por isso que sempre que aqueles pensamentos voltavam a mim, eu já não conseguia sentir angústia ou tristeza, não, tudo havia se transformado em raiva. Um sentimento tão latente e perturbador quanto as lembranças que invadiam minha mente a despeito de qualquer esforço que eu fazia para mantê-las afastadas. Ardente como a cidade em chamas da qual eu fui levado contra a minha vontade, como as labaredas nos galhos secos que começavam a queimar diante de mim.

- Dranô...

Péssima hora. Tagi havia retornado e eu não a percebi se aproximando. Meus pensamentos eram tão massivos que não fui capaz de notar quando as chamas se acenderam na minha frente em meio ao ciclo escuro, então não era exatamente uma surpresa eu não notar a aproximação de uma caçadora versada na arte da furtividade. Eu senti em minhas mãos que uma das pedras estava suficientemente afiada para causar danos em alguém. Que chances eu teria contra uma jovem performista das magias do combate? Eu não sabia quanto às possibilidades de sucesso em feri-la de forma significativa, mas sabia muito sobre a raiva que eu alimentava contra a minha salvadora.

AcallaWhere stories live. Discover now