Episódio 19.1 - Liera: Cisão

7 1 0
                                    

Eu não soube dizer quantos ciclos se passaram. Minhas costas doíam, eu estava deitada sobre algo rígido e frio. Meus pés estavam molhados e o som das ondas foi a primeira coisa que ouvi.

"A oferenda..." – As memórias atribuíram sentido às sensações. Meus olhos se ajustaram à penumbra quando os forcei a se abrirem. Eu tentei proferir palavras que não saíram. Me concentrei em meus braços e senti meus dedos. Dedos que levei às pernas e subi pelo corpo. Eu estava inteira. Senti o toque das minhas mãos e elas sentiram a minha pele. A energia em expansão entregou a retomada de consciência, a sombra sobre mim se movimentou me expondo ao sol no ápice do seu ciclo. As presas inconfundíveis da montaria foi a próxima coisa que vi. O Roaz expressou satisfação ao me ver viva após tanto esforço em me guardar, eu o acariciei notando os pelos queimados pelo sol sobre boa parte da sua face.

- Você... – Ainda era difícil falar. A dor e a fome, e o peso sobre o peito que me dificultava a respiração. A cria do sacrifício repousava sobre mim e também pareceu contente com o meu despertar. Eu os abracei aliviada em tê-los ali comigo. Com alguma dificuldade me coloquei em pé, nós estávamos em um pedaço maciço de pedra em meio à imponência das águas turvas. O sacrifício foi entregue e a escuridão me aguardava, eu ordenei aos céus que cobrissem o sol sobre aquele ponto no mar e toquei o Roaz:

- Siga as minhas ordens, defenda a cria e aguarde aqui sob a sombra das nuvens. E obrigada por tudo!

Os meus pés plantados sobre a rocha me firmavam na certeza dos meus atos. Eu nunca duvidei das bases nas quais construí a minha forma de governar, mesmo diante de um regime que insistia em ditar a minha história como regente. O medo de tocar as águas era real. O cheiro de morte e decomposição afastava de mim o desejo de prosseguir, mas o anseio da imposição era maior. Todos respeitariam a autoridade máxima da nação diante de tamanho sacrifício, a minha memória seguiria viva junto com a guerra. Eu limpei minha mente e acalmei minha alma. Me concentrei no sacrifício marcado com meu sangue quando entrei no mar.

Na submersão eu encontrei calmaria. Eu não sabia o que esperar e com uma performance gestual me movimentei pelas águas. O elementalismo me tornou sensível ao elemento de forma que a sua presença não passou despercebida. Uma sombra se expandia na escuridão, suas asas estendidas como se voassem sob as águas. As presas do colosso se abriram diante de mim para vingar sua morte. A força das águas sugadas para o interior me carregou para dentro. A paralisia causada pelo inesperado me roubou a chance de reação. Eu nada vi, eu não senti muito além do pânico. Uma pancada contra algo sólido e meu corpo voltou a doer. Ar, eu consegui respirar novamente. As palmas das mãos tatearam a base petrificada confundindo a mente, não havia entranhas ali? Me apoiei em meus braços e afastei os cabelos encharcados do rosto, uma tragada profunda de ar antes de acender a esfera flamejante que dissolveu o breu. As veias pulsantes estendidas do fundo da caverna me fizeram entender que o sacrifício fora aceito, do contrário as águas teriam me consumido ao primeiro contato.

- A fenda!

- Perdida no tempo. Escondida do teu mundo. Existente na memória de poucos. – Sua voz ecoou da escuridão, alta e convicta, diferente de tudo o que eu havia ouvido.

- Você... tem consciência?

- E como não teria? A natureza da minha criação me faz expandir em carne e intelecto. Desejo ver-te, regente de Acalla. Venha.

Eu também desejava vê-lo. A criatura que extinguiria da existência o regente que atentasse contra outros povos. O acordo de sangue que herdei, selado quando nossos antepassados assumiram a responsabilidade por seus atos. Conhecê-lo era imprescindível para os planos. Eu sentia o pulsar que lhe deu vida no início de suas eras. A fenda do repouso era grande e ele tão grande quanto sua morada. Eu não estava diante do Pacto de Paz, eu estava nele, estava sobre ele, cercada por ele. Cercada pelas veias nas paredes e sobre sua carne disforme que se espalhava pelo solo, debaixo do núcleo pulsante e da rachadura por onde ele proferia as palavras que eu ouvia.

AcallaWhere stories live. Discover now