Episódio 07 - Origens II

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Houve o tempo em que pensamos que o rompimento com o ciclo da violência seria a grande mensagem das entidades para nós. Muito antes dos humanos elas próprias guerreavam entre si em outros planos, e no plano terreno nos expunham como seres submissos ao caos sobre o qual não tínhamos controle algum. Quando naquele ciclo lunar as entidades da Cura e do Tempo nos agraciaram com o seu favor, acreditou-se que os seres superiores entenderam que a história precisava de novos rumos, que havia justiça divina sendo feita na preservação da raça humana. Houve ainda um entendimento subjetivo, quase velado, que estávamos enfim sendo cuidados como um filho é cuidado por seu pai. Ora, quem não sentiria o amor do que vinha dos céus com tamanha graça alcançada? Nós não morremos enquanto sujeitos, não nos extinguiram enquanto espécie e nos garantiram o direito inato ao mundo e suas dádivas, afinal ali estávamos também, na verdade, ali estávamos primeiro.

A devoção aos deuses foi a reação inquestionada da espécie mais frágil, a ideologia da subalternidade inequívoca foi natural por parte daqueles que reconheciam em si o próprio criador. Se é verdade que fomos feitos a sua imagem e semelhança, então havia um pouco do sagrado em cada um de nós. Foi essa identificação que motivou alguns grupos a romperem com o ciclo da violência entre os humanos, honrando a mensagem das entidades primordiais que também se voltaram contra a própria guerra celestial.

Em discordância com a história que a humanidade optou por escrever, dois clãs decidiram selar entre si um acordo de paz. Uma escolha curiosa a quem vivenciou aquele período da história. O clã dos Combatentes, guerreiros que performavam suas magias para potencializar seus corpos para o combate, não era exatamente o perfil de sociedade a partir da qual se esperava uma proposta de pacificação. Não havia quem desafiasse um combatente sem estratégias sólidas, um clã inteiro composto por guerreiros de alto padrão, especializados no combate físico e alimentados com o poder do próprio Deus da Guerra não tinham a quem temer. Ainda assim, a opção pelo afastamento do derramamento de sangue dizia muito sobre a real identidade do clã pacifista, contradizendo o que o mundo externo predizia a partir do temor alimentado por tamanho poder.

Estrategicamente, garantir a subsistência de seus membros no ambiente hostil da nova realidade seria facilitado através de alianças. Havia aqueles que respeitavam a vida e o mundo natural tal qual os Combatentes, muito pelo estabelecimento da relação íntima que a natureza dos seus poderes exigia a quem portava as magias do Animalismo. O clã que se relacionava com a vida e a existência dos animais naturais daquele plano entendia que a matança os enfraquecia, suas práticas mais primitivas se voltavam para a defesa da vida selvagem e a preservação dos seres irracionais que estavam à mercê da guerra humana, como os próprios humanos estiveram expostos às disputas das deidades, o paralelo da história os fez se afastarem da crueldade de seus semelhantes em defesa aos próprios princípios. A proximidade ideológica ligou Animalistas e Combatentes, e juntos firmaram a união que deu origem à primeira e mais antiga nação do mundo mágico, a Nação Independente. Os seguidores de ambos os clãs migraram para as terras distantes no sul longínquo daquele plano, lá se estabeleceram na forma de uma sociedade unificada, capaz de garantir sua subsistência sem a necessidade da intervenção de grupos externos.

A proposta era tão ousada quanto necessária. A habitação das terras extremas, em meio ao gelo e à escassez soava convidativa ao contraponto da fartura de perigos que o mundo cultivava. Os demais grupos sentiram isso e buscaram a Nação Independente em outros momentos da história, entretanto, a nova nação havia estabelecido suas próprias leis, definido seu sistema político e criado um ambiente harmonioso entre Animalistas e Combatentes, tendo recusado a suma maioria das propostas de aliança, muito embora nunca tenham se fechado aos refugiados civis dispostos a abandonarem seus clãs para agregarem à nação sob o novo regime político.

A exceção ocorreu com o golpe do massacre elementalista. A tentativa de apagamento do clã durante um dos eventos mais violentos da história antiga resultou na única intervenção bélica da Nação Independente em conflitos externos. A defesa do grupo vulnerável que não desapareceu por completo graças aos Independentes, foi seguida pelo convite expresso da liderança da nação para que os Elementalistas aceitassem as proteções das muralhas de gelo maciço. Após aquele momento a regência passou a seguir com rigor os próprios princípios de não intervir na guerra dos demais clãs, senão com objetivo de findá-las por meios diplomáticos, além de não aceitarem mais comunidade alguma por estas não se acharem limpas das práticas que os valores morais da nação julgavam condenáveis, tais como a matança de seres vivos de maneira desequilibrada, a sedução pelo poder ou a busca desenfreada pelo acúmulo de bens materiais.

AcallaWhere stories live. Discover now