Episódio 19.2 - Dranô: Intrusa

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- Prepare-se! E mantenha firme os teus ossos!

Eu fechei os olhos e tentei não resistir.

- O hospedeiro cede sua carne para a possessão da regente, a energia fragmentada em uma porção equivalente. Dos teus sentidos eu me aposso, no teu corpo farei morada, para valer ao nosso propósito, a prevalência da causa exilada.

Ela era forte. Muito mais forte do que eu sempre senti. Mais uma vez Leona me causava dor com seu poder, mais uma vez meus ossos tremeram e minhas entranhas foram pressionadas. Coloquei para fora todo o alimento que me foi ofertado no palácio em momentos anteriores. Eu me curvei junto as folhas com o rosto sobre os fluidos malcheirosos que saíram aos montes da minha boca sem me importar com nada além da dor. Quando aceitei que ela não cessaria, estendi as mãos me agarrando às pernas da líder exilada em busca de apoio. Ela não se movimentou, apenas disse:

- Você carrega consigo o poder dos Filhos da Guerra! Seja forte! Vá ao encontro do ministro de Liera, ele te aguarda.

Um ministro? Por que exatamente ela precisava de mim? Eu sustentei meu corpo e caminhei para os portões de entrada do palácio arrastando os pés.

- Identifique-se! - Disse um dos guardas. Eu não consegui expressar nada.

- Ele está comigo, deixem-no entrar! - Salazar ordenou ao surgir do círculo interno. Os guardas acataram, eu me coloquei a caminhar ao lado do ministro.

- Isso dói? A possessão mentalista?

Eu escolhi ignorá-lo.

- É muito nobre da sua parte aceitar o acordo. Alguém como Leona precisa de um bom motivo para estar aqui e nestes tempos tem sido impossível conseguir um. Você vai fazer história, garoto!

Eu não quis pensar nas consequências que enfrentaria se a regente descobrisse minha traição, ou mesmo se algo desse errado entre mim e Leona. Eu era uma peça manipulável e facilmente descartável por qualquer um dos lados. O garoto que não fala, sem ninguém no mundo, portador de lembranças corrompidas. Ninguém aceitaria ser possuído pela magia proibida de Neali além de mim, mesmo que apenas por um fragmento de alguém. Nós seguimos para a ala norte do pátio real contornando o castelo pelos jardins até chegarmos aos estábulos.

- Guardas! Níria precisa de vocês! Larguem os postos e sigam imediatamente! Defendam a regente com as vossas vidas!

Antes que a boca de Salazar se fechasse, os soldados partiram para a batalha contra os Executores esvaziando por completo a ala norte do círculo interno.

- Por aqui. - Após os estábulos havia uma área reservada. Aparentemente ninguém frequentava o lugar que não abrigava nada além de ervas e musgo. O ministro estendeu as mãos sobre a terra e recitou algumas palavras. O local estava oculto por magia de ilusão, uma abertura no solo foi revelada.

- Entre!

Eu entrei sem qualquer questionamento. A estrutura escura e úmida levava a uma série de passagens antigas que desciam ainda mais abaixo. Acessamos outros níveis até chegarmos à base, ali jazia uma ampla sala circular com portas de madeira fortificadas. O tempo foi eficaz em desgastar as paredes e as pilastras de pedra, mas a crueldade das punições aplicadas aos prisioneiros persistiu fazendo das celas envelhecidas sua eterna morada. O ministro tocou uma das portas fechadas e falou:

- Estamos aqui, a antiga prisão desativada por Liera.

A voz de Leona ecoou em minha mente:

- Caia!

Eu sei que houve consentimento, mesmo assim eu não gostei daquilo. Fui induzido a um estado de semiconsciência. A manutenção e o controle de alguns poucos sentidos era tudo o que eu tinha, visões confusas de vultos e memórias, ou da própria história sendo vivida naquele exato momento. Não sei, era impossível separar o imaginário do real. Salazar estava lá, ele viu o que Leona também viu, ou fez o que ela também fez. Uma magia de revelação eu senti, a mesma usada em Astandor para expor as identidades de Kassandra e Kaú, mas ali ela durou mais tempo. Eu recobrei o senso de realidade nos braços do ministro que me carregava pelos jardins:

AcallaWhere stories live. Discover now