Prólogo

101 1 0
                                    

Véspera de Natal, 1998

Exatos quarenta dias após ter segurado a mão de seu marido pela última vez, Julie Barenson estava sentada diante da janela, olhando as ruas tranquilas de Swansboro, Carolina do Norte. Fazia frio. O céu estava fechado havia uma semana e a chuva batia suavemente na vidraça. As árvores estavam desfolhadas e os galhos ásperos, curvados ao vento como dedos artríticos.
Julie sabia que Jim teria desejado que ela ouvisse a música essa noite. Ao fundo , Bing Crosby cantava "White Christmas". Também havia sido para ele que montara a árvore , mas quando decidira fazer isso os únicos pinheiros restantes já estavam secos, abandonados do lado de fora do supermercado para quem quisesse levá-los. Não tinha importância. Na verdade, não conseguira reunir energia suficiente para se importar nem mesmo depois de terminar de decorar a árvore. Estava difícil sentir qualquer coisa desde que o tumor no cérebro de Jim enfim lhe tirara a vida.
Aos 25 anos, Julie era viúva e detestava tudo nessa palavra: o som, o significado, o modo como sua boca se movia ao pronunciá-la. Evitava-a ao máximo. Se as pessoas lhe perguntavam como estava, limitava-se a dar de ombros. Mas às vezes, apenas às vezes, sentia a necessidade de responder:

Quer saber como é ser viúva? Então lhe direi: Jim está morto e agora sinto como se eu também já não vivesse mais.

Julie se perguntava se era isso que as pessoas queriam ouvir. Ou se esperavam que ela dissesse os lugares-comuns: Vou ficar bem. É difícil, mas vou superar isso. Obrigada por perguntar. Ela achava que poderia se mostrar forte, mas nunca fizera isso. Era mais simples e honesto apenas dar de ombros e não dizer nada.
Afinal de contas, não sentia que ficaria bem. Durante metade do tempo não achava nem que seria capaz de chegar ao fim do dia sem desmoronar. Sobretudo em noites como essa.
Julie encostou a mão na janela, que refletia o brilho das luzes da árvore, sentindo o vidro ficar frio em sua pele.
Mabel a havia convidado para jantar naquela noite, mas Julie recusara. O mesmo convite tinha sido feito por Mike, Henry e Emma - todos rejeitados. Eles compreenderam, ou fingiram compreender, porque estava óbvio que achavam que ela não deveria ficar sozinha. Talvez estivessem certos. Tudo na casa - tudo o que via, cheirava e tocava - fazia com que ela se lembrasse de Jim. As roupas dele ocupavam metade do closet, o barbeador ainda estava perto da saboneteira no banheiro e o último número da Sports Illustrated chegara pelo correio no dia anterior. Na geladeira ainda havia duas garrafas de Heineken, a cerveja favorita dele. Mais cedo naquela noite, ao vê-las na prateleira, Julie havia sussurrado para si mesma: "Jim nunca as beberá." Em seguida fechara a porta, se encostara nela e passara uma hora chorando na cozinha.
A cena do lado de fora da janela estava desfocada. Perdida em pensamentos, Julie aos poucos notou o som surdo de um galho batendo na parede. A batida era persistente e firme, e um instante depois ela percebeu que não era um galho.
Alguém estava batendo à porta.
Julie se levantou com movimentos letárgicos. À porta, parou para passar as mãos pelos cabelos, numa tentativa de se recompor. Se fossem seus amigos querendo saber como ela estava, não queria que eles se sentissem obrigados a ficar um pouco para lhe fazer companhia. Porém, ao abrir, ficou surpresa por ver um jovem com uma capa de chuva amarela. Em suas mãos havia uma grande caixa embrulhada.

- Sra. Barenson?
- Sim.
O rapaz deu um passo à frente, hesitante.
- Vim lhe entregar isto. Meu pai disse que era importante.
- Seu pai?
- Ele quis ter certeza de que a senhora receberia esta noite.
- Eu o conheço?
- Não sei. Mas ele insistiu muito. É um presente de outra pessoa.
- De quem?
- Meu pai disse que você entenderia quando abrisse a caixa. Mas não a balance e mantenha este lado para cima.
Antes que Julie pudesse impedi-lo, o jovem pôs a caixa nos braços dela e se virou para ir embora.
- Espere - disse ela. - Não entendo...
O jovem olhou por cima do ombro e disse:
- Feliz Natal!

Julie ficou parada à porta, observando-o entrar na picape. Ao voltar para dentro, pôs a caixa no chão em frente à árvore e se ajoelhou ao lado dela. Uma rápida olhada confirmou que não havia nenhum cartão ou qualquer outra indicação de quem a enviara. Ela desfez o laço, levantou a tampa e se viu olhando, sem palavras, para o presente.
Ele era pequeno e peludo, pesava menos de um quilo e estava sentado num canto da caixa. Era o cãozinho mais frio que ela já vira. Tinha uma cabeça grande, desproporcional ao resto do corpo. Ganindo, ele a olhou com olhos remelentos.
Alguém resolveu me dar um filhote de cachorro, pensou Julie. E um filhote feio.
Preso dentro da caixa havia um envelope. Ao estender a mão para pegá-lo, ela reconheceu a letra e se deteve. Não, pensou, não pode ser...

Julie tinha visto aquela letra nas cartas de amor que Jim lhe escrevera em seus aniversários de casamento, em recados anotados às pressas quando ele atendia o telefone e em papéis empilhados na escrivaninha. Segurou o envelope na sua frente, lendo repetidamente seu nome. Então, com as mãos trêmulas, tirou a carta de dentro dele. Seu olhar se fixou nas primeiras palavras:

Querida Jules,

Era assim que Jim a chamava e Julie fechou os olhos, com a sensação de que seu corpo estava encolhendo de repente. Obrigou-se a respirar fundo e começou a ler:

Querida Jules,

Sei que, se você está lendo esta carta, eu já parti. Não sei exatamente há quanto tempo, mas espero que você esteja se recuperando. Sei que isso seria difícil pra mim se eu estivesse em seu lugar, mas você sabe que sempre a achei mais forte que eu.
Como pode ver, comprei um cachorrinho para você. Harold Kuphaldt era amigo de meu pai e cria cães da raça dinamarquês desde que eu era criança. Quando garoto, eu queria ter um, mas a casa era muito pequena e minha mãe nunca deixou. Eles são cães grandes, mas, segundo Harold, são os mais doces do mundo. Espero que você goste dele ( ou dela).
Acho que no fundo eu sempre soube que não iria sobreviver. Mas não queria pensar nisso, pois sabia que você não tinha ninguém para ajudá-la a passar por algo assim. Quero dizer, ninguém da família. Eu ficava de coração partido ao pensar que você enfrentaria tudo isso sozinha. Sem saber o que mais poderia fazer, tomei providências para lhe dar este cão.
É claro que você não é obrigada a ficar com ele se não quiser. Harold disse que o aceitará de volta, sem problemas. (O número do telefone dele deve estar na caixa.)

Espero que você esteja bem. Desde que adoeci sempre me preocupei com isso. Eu amo você, Jules. Amo de verdade. Fui o homem mais sortudo do mundo por você ter entrado na minha vida. Eu ficaria arrasado se você nunca mais voltasse a ser feliz. Então, por favor, faça isso por mim. Seja feliz de novo. Encontre alguém que a faça feliz. Isso pode ser difícil ou talvez você pense que é impossível, mas eu gostaria que tentasse. O mundo fica melhor quando você sorri.
E não se preocupe. De onde eu estiver, cuidarei de você. Serei seu anjo da guarda, querida. Pode contar comigo para protegê-la.

Amo você.

Jim.

Com lágrimas nos olhos, Julie estendeu o braço para dentro da caixa. O filhote se aconchegou em sua mão. Ela o ergueu e o levou até perto do seu rosto. O cão era feio mesmo, pensou. E ficaria do tamanho de um cavalo pequeno. O que ela faria com um cão daqueles?
Porque Jim não lhe dera um schnauzer miniatura com bigode cinzento ou um cocker spaniel com olhos redondos e tristes? Algo mais simples? Um cão fofinho que pudesse se aninhar no colo dela de vez em quando?
O filhote, um macho, começou a ganir, um lamento agudo que aumentava e diminuía como o eco do apito de um trem ao longe.

- Shh... você vai ficar bem - sussurrou ela. - Não vou machucá-lo...

Julie continuou a falar baixinho com o filhote, deixando que ele se acostumasse com ela e ainda assimilando o que Jim fizera. O cachorrinho continuou a ganir, quase como se acompanhando a música ao fundo, e Julie acariciou o pescoço dele.

- Está cantando para mim? - perguntou, sorrindo pela primeira vez. - É o que parece sabe?

Por um momento, o cão parou de ganir e olhou para ela, sustentando seu olhar. Então começou a ganir de novo, embora desta vez não parecesse tão assustado.

- Singer - sussurrou ela. - Acho que vou chamá-lo de Singer.

O GuardiãoWhere stories live. Discover now