Capítulo 2

29 0 0
                                    

As letras das canções de Mike Harris deixavam muito a desejar e a voz dele não fariam com que os executivos das gravadoras batessem à porta de sua casa, em Swansboro. Entretanto, ele tocava guitarra e ensaiava todos os dias, esperando que sua grande oportunidade estivesse próxima. Em dez anos, havia tocado em uma dúzia de bandas diferentes, desde as formadas por roqueiros cabeludos e barulhentos dos anos 1980 às de estilo country, singelo e meloso.
No palco, usara de tudo, de calças e couro e pele de cobra a calças de vaqueiro e chapéus de caubói. Embora tocasse com um entusiasmo evidente e os membros da banda gostassem dele, em geral era descartado após algumas semanas sob a alegação de que as coisas não estavam funcionando por algum motivo. Isso tinha acontecido vezes suficientes para que até Mike percebesse que talvez não fosse apenas um conflito de personalidade, embora ainda não conseguisse admitir que não era bom o bastante.

Ele também tinha um caderno em que, em seu tempo livre, anotava seus pensamentos, pretendendo usá-los num futuro romance. Porém o processo de escrita era mais difícil do que ele havia imaginado. Não que ele não tivesse ideias. Pelo contrário: tinha até de mais e não conseguia decidir o que deveria incluir na história ou não. No ano anterior, tentara  escrever um romance policial ambientado num cruzeiro - algo no estilo de Agatha Christie, que incluía a costumeira dúzias de suspeitos. Mas ele achou que a trama não era muito empolgante, por isso tentou usar todas as ideias que já tivera: uma ogiva nuclear escondida em São Francisco, um policial corrupto que testemunhara o assassinato de John Fitzgerald Kennedy, um terrorista irlandês, a Máfia, um garoto e seu cão, um investidor em capital de risco inescrupuloso e um cientista que, viajando no tempo, escapara da perseguição do Sacro Império Romano. No fim das contas, o prólogo se estendera por centenas de páginas sem que os principais suspeitos tivessem entrado em cena. É claro que ele não levou o projeto adiante.
No passado Mike também tentara desenhar, pintar, trabalhar com vitrais, cerâmica, entalhe em madeira e macramê. Fizera até algumas peças de arte livre numa explosão de inspiração que o mantivera afastado do trabalho durante uma semana. Juntou e soldou  peças velhas de carros em três estruturas altas e desequilibradas e, quando terminou, sentou-se nos degraus da frente de sua casa, olhando com orgulho para o que fizera, sabendo no fundo do seu coração que enfim encontrara  sua vocação.

Esse sentimento durou uma semana, até que, numa reunião convocada às pressas, o conselho municipal expediu uma ordem de proibição de "lixo no quintal". Como muitas pessoas, Mike Harris tinha o sonho e o desejo de ser artista; só não tinha talento para isso.

Contudo, Mike conseguia concertar praticamente qualquer coisa. Era o perfeito faz-tudo, um verdadeiro cavaleiro de armadura brilhante quando apareciam vazamentos na pia da cozinha ou quando o triturador de lixo dava defeito. Além de um bom faz-tudo, ele era um Merlin dos tempos modernos quando se tratava de qualquer coisa com quatro rodas e um motor. Ele e Henry eram donos da oficina mais concorrida da cidade e, enquanto Henry lidava com a papelada, Mike se encarregava do trabalho de verdade. Carros importados ou nacionais, ele era capaz de concertar todos. Conseguia ouvir um motor - os silvos e cliques que ninguém mais ouvia - e descobrir o que estava errado, em geral em poucos minutos. Entendia de tubulações e válvulas de admissão, amortecedores, pistões, radiadores e ajustes de chassis, e se lembrava do tempo de concerto de quase todos os carros que já haviam passado pela oficina.

Era capaz de reconstituir motores sem precisar consultar um manual. Estava sempre com as pontas dos dedos manchados de preto. Sabia que esse era um bom modo de ganhar a vida, mas às vezes desejava poder pegar uma pequena parte de todo esse talento e usar em outras áreas.

A tradicional fama de que os mecânicos e os músicos tem sucesso com as mulheres não se aplicava a Mike. Ele tivera apenas duas namoradas firmes. Uma delas no ensino médio. Outro namoro, com  Sarah, terminara havia três anos. Então seria possível pensar que Mike não queria um relacionamento sério, ou mesmo que durasse todo o verão. Às vezes ele mesmo refletia sobre isso, mas atualmente, mesmo que desejasse o contrário, parecia que todos os seus encontros terminavam com um beijo no rosto e a acompanhante lhe agradecendo por ser um ótimo amigo.

O GuardiãoWhere stories live. Discover now