Capítulo 12

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No escuro, sob uma nesga de lua, Richard se aproximou da porta da frente da casa vitoriana que alugara por temporada. Situada nos arredores da cidade, era cercada por terra cultivada e ficava a uns 100 metros da estrada principal.

Pálida à luz fraca do luar, a casa tinha metade da altura dos pinheiros que a cercavam. Embora um tanto degradada, ainda mantinha certo encanto, com acabamentos e revestimentos de madeira que lembravam um convite enfeitado para uma festa na casa do governador. A propriedade precisava de manutenção; o antes bem cuidado jardim estava repleto de ervas daninhas, mas Richard não se importava com isso. Achava que havia beleza na aleatoriedade da natureza, nas linhas curvas e irregulares das sombras à noite e nas cores e formas variadas dos galhos e das folhas à luz do dia.

Contudo, a aleatoriedade acabava à porta. Do lado dentro preferia ordem. Acendeu as luzes ao entrar. Os móveis alugados - não muitos, mas o suficiente para deixar a casa apresentável - não eram do seu gosto, mas numa cidade pequena como Swansboro as escolhas eram limitadas. Num mundo de produtos baratos e vendedores usando jaquetas de poliéster, ele havia escolhido os itens menos feios que havia encontrado: sofás de veludo bege, mesas laterais revestidas de carvalho e luminárias de plástico imitando metal.

Esta noite, porém, não notou a decoração. Só pensava em Julie. E no medalhão. E no modo como ela o olhara alguns minutos antes.

Mais uma vez ele havia sido muito insistente e Julie se ressentira disso. Ela estava se tornando um desafio, mas Richard apreciava e respeitava isso, pois o que mais desprezava era fraqueza.

Por que Julie vivia numa cidade pequena como aquela?

Richard achava que o lugar dela era na cidade grande, com calçadas cheias de gente e sinais luminosos, insultos rápidos e respostas incisivas. Julie era muito inteligente e elegante para um lugar como aquele. Não havia energia ali para movê-la, nada para mantê-la a longo prazo. Quando não é usada, a força se dissipa e, se Julie permanecesse ali, acabaria se tornando fraca, como a mãe dele. E, com o passar do tempo, não haveria nada para respeitar.

Como a mãe dele. A vítima. Sempre a vítima.

Richard fechou os olhos, voltando ao passado. Tudo havia acontecido em 1974 e a imagem era sempre a mesma.

Com o olho esquerdo fechado de tão inchado e um hematoma, a mãe carregava uma mala para a caminhonete, tentando andar depressa. A mala continha roupas para os dois. Ela levava na bolsa 37 dólares em moedas. Demorara quase um ano para juntá-las. Vernon controlava as finanças e só lhe dava o suficiente para a comida. Ela não podia tocar no talão de cheques e não sabia em que banco o salário dele era  depositado. O pouco dinheiro que tinha fora recolhido das almofadas do sofá, moedas caídas dos bolsos de Vernon quando ele cochilava diante da televisão. Sua mãe as escondera numa caixa de sabão em pó na prateleira de cima da despensa e sempre que Vernon ia nessa direção seu coração disparava.

Ela disse a si mesma que dessa vez estava indo embora para sempre; que ele não a convenceria a voltar. Disse a si mesma que não acreditaria nele, não importava quanto fosse gentil e quão sinceras parecessem suas promessas. Disse a si mesma que, se voltasse, ele a mataria. Talvez não naquele mês ou no seguinte, mas a mataria. E depois mataria o filho deles. Disse e repetiu tudo isso como um mantra, como se as palavras pudessem lhe dar forças para prosseguir.

Richard pensou em sua mãe naquele dia. Em como o mantivera em casa, sem ir à escola e lhe dissera que corresse lá dentro para pegar o pão e manteiga de amendoim porque eles iam fazer um piquenique. Em como lhe dissera que também deveria pegar uma jaqueta, caso esfriasse. Ele tinha 6 anos e fez o que a mãe mandou, embora soubesse que ela estava mentindo.

Na noite anterior, deitado na cama, ele a ouvira gritar e chorar. Ouvira o som forte da mão do pai atingindo o rosto dela, e a mãe batendo na parede fina que separava o quarto de Richard do deles, gemendo e implorando que ele parasse, dizendo que sentia muito, que planejara lavar a roupa, mas precisara levar o filho ao médico. Richard escutara Vernon xingar sua mãe e fazer as acusações que sempre fazia quando estava bêbado. "Ele não se parece comigo! Não é meu filho!"

Deitado na cama ouvindo os gritos, Richard rezara para que aquilo fosse verdade. Não queria que aquele monstro fosse seu pai. Odiava-o. Odiava o brilho oleoso de seus cabelos ao voltar para casa da fábrica de produtos químicos e seu cheiro de álcool à noite. Odiava o fato de as outras crianças do bairro terem ganhado bicicletas e patins no Natal e ele, um taco de beisebol, sem luvas ou bola. Odiava o modo como eles sempre mantinham as cortinas fechadas e nunca podiam receber visitas.

- Depressa - disse sua mãe, acenando. - Temos que encontrar uma boa mesa no parque.

Richard correu para dentro da casa.

O pai voltaria em uma hora, para o almoço, como faia todos os dias. Embora fosse a pé para o trabalho, levava as chaves do carro, junto com muitas outras, numa argola presa ao cinto. Naquela manhã sua mãe havia pegado uma das chaves enquanto ele fumava, lia o jornal e comia ovos com bacon que ele havia preparado.

Eles deviam ter ido embora imediatamente, logo depois de o pai desaparecer na colina a caminho da fábrica. Até Richard, com apenas 6  anos, sabia disso, mas sua mãe havia ficado sentada à mesa durante horas, fumando um cigarro após o outro, com as mãos trêmulas. Só havia falado ou se mexido minutos antes.

Mas agora eles estavam ficando sem tempo. A mãe se apavorava com a ideia de que não fossem conseguir. De novo.

Richard saiu correndo pela porta, trazendo o pão, a manteiga de amendoim e a jaqueta, e foi na direção do  carro. Mesmo correndo, conseguiu ver o olho esquerdo da mãe injetado de sangue. Ele bateu a porta do Pontiac e a mãe tentou enfiar a chave na ignição, mas não conseguiu. Suas mãos tremiam. Respirou fundo e tentou de novo. Dessa vez o motor ligou e ela tentou sorrir. Seus lábios estavam inchados e deformados. Havia algo de apavorante naquele sorriso. Ela deu ré e saiu da garagem. Na estrada, andaram em marcha lenta por um momento e então ela olhou para o painel.

Suspirou. O mostrador indicava que o tanque estava quase vazio.

Então eles ficaram. De novo. Como sempre.

Naquela noite, Richard ouviu a mãe e o pai no quarto, mas não eram sons de raiva. Em vez disso, eles riam e se beijavam. Mais tarde ouviu a mãe ofegando e dizendo o nome do pai. Na manhã seguinte, quando Richard saiu da cama, eles estavam abraçados na cozinha. O pai piscou e Richard o viu abaixar as mãos até a saia da mãe.

Viu-a corar.

Richard abriu os olhos. Não, pensou. Julie não poderia ficar ali. Não se quisesse ter a vida que deveria ter, a vida que merecia. Ele a levaria para longe daquilo tudo.

Tinha sido estúpido de sua parte ter lhe falado sobre o medalhão. Não faria isso de novo.

Perdido em pensamentos, mal ouviu o telefone tocar, mas se levantou a tempo de atendê-lo antes de a secretária eletrônica ser acionada.

Parando por um momento, reconheceu o código de área de Daytona no identificador de chamadas e respirou fundo antes de atender.

O GuardiãoWhere stories live. Discover now