Romeo

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Não encontrei um único taxi. Para não pensar em mais nada distraio-me observando as gotas de chuva escorrerem pela janela do Uber, como as lágrimas devem escorrer pelas bochechas da japonesa todas as noites antes de dormir. Parece que estou pensando. Eu não acredito que estou aqui. Por que estou aqui? Estou aqui porque tenho um pai muito cruel.

Um pai malvado.

Um pai vingativo.

Um pai que adora se sentir útil cuidando sozinho da propriedade. Isso porquê é milionário. Imagina se não fosse! E porque por culpa de do meu irmão mais mentiroso, noite passada, a criatura que deveria aprender a delegar sofreu um pequeno acidente doméstico. Bem pequeno mesmo. Ele estava em cima da escada limpando o duto do ar-condicionado da cozinha quando ouviu sobre aquele acidente aéreo no rádio. Papai tomou um susto porquê aparentemente meu irmão deveria voltar ontem a noite do mesmo estado em que aquela aeronave saiu. Resultado? O velho teve uma vertigem e despencou feito uma jaca podre de uma altura de mais ou menos três metros. Não suportou a ideia de perder o Gael? É discutível. Depois de perder aquele iate eu acho que o nosso velho não suportou perder foi o jatinho, mas quem sou eu para opinar em alguma coisa? Três metros.

Parece pouco, mas aparentemente é o suficiente para acabar com a vida de quatro órfãos, uma babá e três encostos.

O que eu deveria ter feito quando fiquei sabendo, não importa como, que agora, meu pai está internado em estado grave da UTI do Memorial Mercury? Deveria ter rido dessa história absurda, agarrado minha loira comigo e voltado a dormir. Era isso que eu deveria ter feito. E se alguém sabe que eu tenho uma informante? E essa informante me traiu? O que me prova que meu irmão realmente estava em Brasília? E mesmo se estivesse papai pode muito bem ter visto nessa coincidência tenebrosa a oportunidade perfeita para me castigar. Ter feito isso é muito mórbido, mas também é bem a cara dele.

Se estou certo disso por que pulei da cama? Por que enfiei umas roupas a esmo na mochila? Por que esqueci o significado das palavras radar de velocidade e entrei no primeiro voo disponível para a capital paulista? Por que estou saltando do taxi e correndo embaixo de chuva até as portas duplas do Memorial Mercury? Porque eu sou frouxo. Frouxo. Deus e eu sabemos que ainda vou pagar caro por toda essa minha frouxice toda. O que eu tinha que amar tanto esse lunático do caralho? Porra, até esqueci de pegar cueca.

Meu olhar para no bar do outro lado da rua. É inevitável. Josephine's continua idêntico. É nostálgico olhá-lo. Ele não me interessa mais. Nenhuma das saudades que não posso mais matar interessa. Entro no hospital me corroendo por dentro. Não hesito, mas também não acredito que estou fazendo isso. Não acredito que estou jogando fora meses de um trabalho muito bem feito para me manter no anonimato. Mas estou.

Rendo-me quando entrego meu documento na mão de uma das recepcionistas do hospital.

Meu pai é um homem importante. Não é qualquer um que conseguiria vê-lo. Para isso precisaria ter o nome em uma lista fornecida pela família. Muita coincidência que alguém lembrou de colocar meu nome nela. A garota libera minha entrada, pedindo que eu me dirija até o balcão da UTI. Disparo pelo piso marfim rumo aos elevadores. Estão parados dois andares acima. Praguejo optando pelas escadas para chegar mais rápido. Fingimento ou não, uma coisa é certa, eu não parei de correr desde que li aquelas mensagens. Preciso ver com os meus próprios olhos que meu pai está bem e que isso não passa de um truque para me fazer dar as caras em casa.

Um truque batido, por sinal.

Não é mais segredo que papai adora usar sua famosa artéria entupida para nos atrair fingindo um infarto. Ele diz que todas estão entupidas, mas é uma só. Nós sabemos que é fingimento, mas como somos todos FROUXOS, sempre dá certo. Sabe o que acontece quando chegamos perto para acudir? Ele melhora e nós tomamos uma bengalada dolorida para cacete na região da canela. Sem querer. Se o que aprontamos foi muito feio é no joelho. Ter abandonado uma garota grávida e ficado meses sem dar notícias? Nem quero imaginar onde meu pai vai enfiar aquela bengala do cacete.

Ele deve ter pensado que o infarto de sempre já estava manjado. E com razão. Por um infarto era bem capaz de eu não ter saído de casa mesmo.

Será que matar o próprio pai mesmo tendo bons motivos para isso, ainda é um daqueles pecados que nos mandam direto para o inferno? Já tenho minha passagem só de ida garantida para lá, estou perguntando apenas por curiosidade mesmo. Eu acho que sim, Roberta saberia me responder com certeza. Por falar nela, como será que anda? O pivete realizou o sonho dela? Deles? Robie está com uma barriga que não passa na porta, chorando até por picada de mosquito? E você Gael? Há três sábados, em primeiro de abril você eternizou a mentira que chama de amor se casando com a Dra. Bruna Marcondes? Ou será que eu consegui adiar esse erro? Parece que eu vou descobrir no funeral. Minha vontade era mesmo a de grudar na garganta do papai. Eu vou no mínimo, dar um chilique de herdeiro mimado. No mínimo! Estou há horas com um nó na garganta horrível por causa dele. Brincadeira besta!

Se eu pudesse, teria entrado escondido no hospital. O plano perfeito seria ver o que preciso e sair de fininho da cidade antes que alguém me visse. Bruna estragou minha possibilidade de plano perfeito. De qualquer maneira, eu acho que não teria dado certo. Eu acho que assim que eu entrar na UTI, vou ser agarrado por muitos pares de mãos, sentir uma picadinha (onde pegar) e acordar em uma jaula. Deus, que medo. No andar certo, passo por uma porta dupla para chegar à sala de espera da unidade intensiva. Uma das enfermeiras atrás do balcão me explica que só pode entrar um visitante por vez e pede que eu espere enquanto confere no sistema se tem alguém com o meu pai antes de liberar minha entrada. Não tem.

Estranho.

Muito estranho.

Com uma família grande como a nossa, isso me cheira a cilada. Pressiono minha digital no painel fazendo as portas de vidro opaco se abrirem. Mercury é um hospital da elite. É renome em tecnologia. Todo o acesso dentro dele é feito unicamente por biometria. Bruna não é uma égua? O hospital dela atende pacientes com o poder esquisito elevado que exigem esse tratamento reservado. Muitos não podem ou não querem sua estadia aqui divulgada na imprensa. Exatamente como é o caso do meu pai. Eu nunca teria chego aqui sem deixar aquela recepcionista alisar a minha mão com um sorriso safado na cara enquanto me devolvia minha identidade, algo, que aliás, só piorou o meu humor.

Como eu disse, Bruna é uma égua.

Uma manchete dizendo que o presidente do conglomerado joalheiro mais rentável do país está nas ultimas depois de brincar de poli dance com uma escada teria um impacto muito forte nos nossos negócios. Eu gelo só de pensar. Nossa equipe de RP teria que dobrar madrugadas. É um problema que a joalheria não precisa. Especialmente porque é mentira. É mentira! Leonardo deve estar no comando e para todo que pergunta o velho está viajando. Eles pensam que eu sou besta? Pelo visto, eu sou.

Cumprimento uma das técnicas olhando para as fileiras de leitos de vidro. Todos vedados por cortinas internas. Olho para os dois lados do corredor para me situar e dobro a direita. Meus passos ecoando no corredor vazio enquanto passo pelos leitos privativos conferindo as placas penduradas na parede.

4,5,6... 7.

Não acredito que estou mesmo prestes a acabar com a minha paz.

Um acerto de contas com o velho não estava nos meus planos por enquanto. Eu ainda não me sinto pronto. Mas como acho que nunca vou me sentir, não fico protelando o inevitável.


Relações públicas.


E ai? É uma manipulação ou é real?

Todas as lágrimas que choreiWhere stories live. Discover now