Isabela

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Basta que eu encare o céu cinzento através das janelas para que meus pensamentos procurem o Romeo. Eles sempre procuram o Romeo.

Cadê você Romeo?

Não saber dói mais quando o tempo está assim.

Embora eu sempre tenha amado dormir escutando a sinfonia da chuva, esse som harmônico das gotas batendo contra a janela me confortava mais quando eu o tinha para me fazer companhia em meio as tempestades a minha vida. Sinto falta de sentir seu cheiro dominando um cômodo, de suas pernas se enroscando as minhas, do peso do seu antebraço tatuado sobre mim, da mão que espalmava em minha barriga ou fechava em meu seio. Da sua companhia, do seu carinho. Romeo fazia com que eu me sentisse segura. Era um tipo de conforto que eu não experimentava desde a época em que ainda dormia no quarto de frente para o dos meus pais, com os dois agarrados como nós na cama deles. Mas se antes dias chuvosos faziam com que eu sentisse que tinha encontrado um porto seguro, agora fazem com que eu me sinta mais uma vez à deriva. Fico perdida. Dentro de mim. Dentro da nossas memorias.

Dentro da minha tristeza.

O que você foi fazer gifu?

Encaro a tristeza que permeia os rostos adormecidos de dois dos seus filhos. Leo está dormindo em um dos sofás com as pernas em cima do irmão. Gael dormiu também, mas as meninas não conseguiram fazer o mesmo. Uma delas nem pode. Bruna não para de acariciar os cabelos da freirinha triste deitada em seu colo. Ela ligou um desenho para distraí-la enquanto espera e os olhos das duas não se desgrudam mais da TV, mas duvido que realmente estejam concentradas no Pica-Pau. Deve estar pior para o neném que precisou sair correndo de manhã para abrir o cérebro de alguém. Também não estou conseguindo me concentrar no desenho. Não paro de afagar o cachorro dormindo no meio das minhas pernas com o pé enquanto desvio meu olhar para as gotas de chuva escorrendo pelo vidro da janela. E delas para as gotas do soro pingando na bolsa que a médica da família está esperando terminar.

Depois disso se torna inevitável para mim não pensar naquele dia de novembro.

No dia em que abri os olhos para dar de cara com um suporte de soro idêntico ao meu lado.

Ele me fez entender de imediato que eu estava em um hospital e mesmo que ainda estivesse um pouco grogue por causa do sedativo que me deram não tive problema para me lembrar de como havia parado lá. Eu me lembrei da dor que sentia quando acordei sozinha em nossa cama. De grunhir e do cachorro preocupado que apareceu na porta do quarto para descobrir o que estava acontecendo. Nem eu sabia. De sentir minhas partes intimas ficando molhadas. De afastar o edredom para me deparar com o sangue que saia de mim como se nem me pertencesse mais. Nosso filho também não pertencia? Era muito, muito sangue.

Eu me lembrei do medo que amargou o céu da minha boca.

Eu não queria perder o nosso filho. Não queria. Por mais que Romeo não o aceitasse. Por mais que Romeo nunca o amasse. Eu amaria. Eu já amava. Amava tanto.

Era doloroso demais constatar que meu corpo tinha decidido expulsá-lo de sua morada, que meu organismo o detectou como um inimigo ao invés de se fazer de abrigo. Eu me sentia amedrontada. Eu me sentia arrasada. E me sentia falha. Tão falha.

Era meu dever protegê-lo.

Eu deveria ser capaz de salvar o nosso akachan.

Lembro de sair da cama tropegamente para chamar a médica que estava dormindo no quarto ao lado. E de não ter chego lá. De ficar tonta. De tombar para frente. De bater a têmpora na mesa de cabeceira. De perder a consciência. O que foi mesmo que eu pensei um segundo antes de acontecer? Oh sim! Eu disse ao akachan para que não se preocupar porque o pai dele não demoraria a voltar para casa. Eu tinha certeza de que o príncipe iria nos salvar. Estava enganada. Foi o Love.

Ele latiu até não aguentar mais. Latiu até acordar o prédio inteiro. Latiu até a Robie entrar correndo pela porta, me encontrar inconsciente no chão do quarto e chamar uma ambulância. Love é tudo para mim.

Eu sentia um vazio imenso no peito quando acordei. Eu só não sabia o quanto havia perdido no tempo em que minha consciência havia sido roubada de mim. Mesmo que o perfume dele não estivesse inebriando os meus sentidos girei na cama hospitalar esperando encontrá-lo sentado na poltrona ao meu lado, mas os olhos preocupados que me guardavam e velavam o meu sono eram do tom errado. Não eram verdes como eu esperava, eram azuis cobalto e encheram-se de água no instante em que se cruzaram com os meus. Lembro de pensar que também me pareciam vazios. E de fato, estavam.

Enquanto eu dormia o joalheiro havia perdido um filho.

E eu suspeitava que não era o único.

Foi um momento foda.

Repasso a conversa que tivemos no dia em que eu finalmente soube que fim tinha dado o Romeo.

— Perdonami, bella.

— O senhor não tem culpa de nada — me lembro de responder sofrendo por nós dois. — É tudo culpa minha. Se eu não tivesse engravidado, aquela mula não teria ido embora...

— Não. Não. — Sr. Joca se sentou mais para frente na poltrona e ergueu um dedo contra os lábios. — Nunca mais repita isso.

— Que ele é uma mula?

— Que a culpa é sua — sorrio tristemente. — Ele é mesmo uma mula.

Eu clamei tanto pelo meu pai quando soube.

Clamei pelo meu pai aos gritos, mas o pai dele era o único comigo.

— Eu nunca vou te abandonar — repetia me apertando forte contra o seu corpo. — Eu sei que muitas pessoas te prometeram o mesmo, mas eu nunca descumpro minhas promessas. Você não me terá mais apenas no dia em que eu morrer, ragazza...

Não paro de observar as gotas do soro.

Não paro nem quando escuto meu nome.

— Eu estou bem — respondo distraidamente, ainda afagando o Love. — Se preocupe apenas com a Roberta, Bruna. — Ela pensa em retrucar, mas se distrai com uma mensagem que recebe no celular.

Enquanto isso eu continuo presa dentro de mim e das minhas memorias, me fazendo a mesma pergunta de sempre. Cadê ele? Cadê você Romeo?

Todas as lágrimas que choreiWhere stories live. Discover now