Isabela

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Nada acontece por acaso. Isso deveria me reconfortar, mas nem sempre saber que os deuses têm um propósito para tudo e todas as coisas faz com que eu me sinta menos ressentida por algumas de suas escolhas. Em especial aquelas que me fodem por dentro. 

Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas? Porque sempre acontecem com as minhas pessoas boas? 

Chega.

Não gosto de levar as coisas para o lado pessoal. Não gosto de afrontar os deuses. Tenho medo disso. Deles.

Esse domingo está diferente.

Está mais triste do que o habitual.

Estou me sentindo uma merda. Pensei que sair um pouco de casa me faria bem e aceitei o conselho de um dos meus ex-cunhados de trocar o aconchego do meu ateliê por uma mesa nos fundos da Love Coffee. Leo disse que tinha que sair para resolver umas coisas na rua e se eu quisesse me deixaria aqui. Fiz bem em aceitar. Ele estava certo. Passar a tarde desenhando em uma mesa escondida de canto, em companhia de uma bebida quente, enquanto os pingos de chuva batiam violentamente contra as janelas da cafeteria antiga de esquina realmente fez com que eu me sentisse melhor. Mais acolhida do que teria me sentido em casa.

Escuto o sino da porta tocar e sou atingida por uma lufada de ar frio quando a mesma torna a fechar.

É fim de tarde agora. Faz algum tempo que a chuva parou e um sol fraco abriu, mas mesmo assim, continua frio. Tirando pela Bells cantarolando na cozinha sou a única aqui. Era.

Eu era.

Fava Tonka.

Irís.

Pimenta rosa.

Amor? — Pauso a ponta do lápis no papel, quando as notas do perfume dele preenchem minha consciência. Esse cheiro é como uma máquina do tempo. Por um curto momento, meus pensamentos são tomados de flashs dele. Romeo de pé no nosso closet me provocando, tentando me morder enquanto estou dando o nó em sua gravata. Romeo recostado na cadeira com o paletó aberto chupando um pirulito em sua mesa na joalheria para me tentar. Romeo entrando pela porta em um sábado à tarde, todo suado dentro de um quimono, vindo para me beijar. Romeo saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura, pronto para me agarrar. Romeo cozinhando apenas de boxer, com um sorriso no rosto. Romeo afundando o colchão ao meu lado e me puxando contra o seu corpo. Romeo enfiando a boca na curva quente no meu pescoço.

Meu corpo arrepia e os olhos ardem.

Quero esconder o rosto e chorar, mas termino rindo comigo mesma.

Reviro os olhos molhados para o bloco de papel e volto a desenhar a motosserra passando meio dele, me divertindo com a minha própria tolice. Não é um perfume fácil de se encontrar, está quase extinto hoje em dia, mas tem mais chances de ser o Michael Jackson do que o Romeo. E olha que para todos os efeitos o homem está morto.

Eu não acredito que o baka vai acordar uma bela manhã com vergonha na cara. Ele não vai reaparecer do nada como se estivéssemos em um conto de fadas. Isso a menos que...

Meu gifu.

Ele foi avisado sobre o meu gifu.

Estou me precipitando. Romeo não está em contato com ninguém. Ele não teria como ter ficado sabendo sobre o pai. Teria? Estou sentindo um formigamento desde que senti seu cheiro que vai me obrigar a ter certeza. Penso em protelar o momento de olhar para o cliente. Só mais um pouco. Só enquanto termino um contorno. Bobagem. Não é como se eu nunca tivesse tomando desapontamento no chá da tarde. Foram muitos os dias em que aconteceu em todas as refeições. Paro de contornar o rosto dele e ergo o olhar para acabar logo com isso. Então acabo comigo.

Comigo.

Todas as lágrimas que choreiOnde as histórias ganham vida. Descobre agora