Romeo

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Encaro meus tênis e dou um passo à frente fazendo com que a porta automática de vidro do leito sete se abra como quem arranca um esparadrapo.

Entro com os olhos nos tênis. Eu sou cara de pau, mas nem tanto. No fundo, estou com um pouco de vergonha de olhar nos olhos do meu pai.

Não que eu vá deixa-lo saber disso.

— Demorei? Hein, seu impaciente do caralho? — Ele não responde. — Não sei com que direito você ousa em interromper as minhas maravilhosas férias não programadas pelas Jontex, mas bom ficar sabendo que eu não vou descansar enquanto sua nora não perder o registro dela por causa dessa brincadeirinha ridícula vocês.

Estranho.

Ele não está escutando meu tom grosseiro? Não me escutou dizer caralho? O que está esperando para me interromper?

— Descer a bengala pelas costas é covardia viu pai? — Ele não pula do leito e acerta minhas pernas rosnando que abandonar uma grávida também foi. Muito estranho.

Esse silencio dele é tão estranho que me faz sentir um frio medronho na espinha. Não ergo o olhar.

De repente fiquei com medo.

— Pai? — Nada. — Pai? — Nada. — Puta que pariu viu, viu pai?! — praguejo criando coragem para erguer o olhar.

É aqui que a coisa muda de figura para mim.

— Pai — ofego sentindo meus batimentos dispararem.

Eu estava esperando um cartaz escrito "bem-vindo ao lar, sua besta".

Não isso.

Não o que estou vendo.

Largo mochila na poltrona e paro ao lado do leito olhando atentamente para cada detalhe dele. Do meu pai. Seu crânio enfaixado, as ataduras cobrindo boa parte do seu rosto pálido; suas olheiras profundas, arroxeadas; as cânulas de oxigênio presas as narinas, sua barba por fazer, maior do que já me lembro de ter visto em minha vida, seus lábios cerrados, esbranquiçados e rachados, envoltos em um tubo preso as bochechas por um esparadrapo, o acesso em seu antebraço, os fluidos na bolsa de soro, todos os fios e máquinas aos quais está ligado. Papai age como se estivesse morrendo até quando tem um resfriado, mas eu nunca o tinha visto assim. Fraco, debilitado, indefeso, machucado...

Sem saber onde posso tocar sem o machucar mais, corro a mão por cima da coberta até encontrar a dele e a aperto de leve.

— Pai? — Ele está entubado. Deve ter sido sedado. — Meu Deus, papai — cubro a boca com a mão livre.

Não dá para fingir isso.

Não dá para fingir nada disso.

Ele fez.

Ele fez essa merda.

Ele despencou da porra da escada.

E nesse momento eu daria qualquer coisa para isso tudo não passar de uma das suas brincadeiras de mau gosto. Irônico, não? Eu não acreditei. Não quis acreditar. Ele é o meu herói. Heróis são indestrutíveis. Eles não acabam com as férias não programadas de ninguém, não ficam entre a vida e a morte na UTI e não roubam uma lágrima sequer dos seus filhos imprestáveis. Parece que o meu herói deu defeito. Parece castigo. Parece que o chão desapareceu de debaixo dos meus pés.

Dou um passo para trás e me deixo cair na poltrona. Não sinto mais meu peso, mas também não solto a mão dele. Não consigo. Ele não pode me deixar. Eu nem sei o que esperar. Não tinha muito nas mensagens da madrugada. Elas diziam que estavam fazendo mais exames. Diziam que, embora o estado de saúde dele fosse considerado grave, ninguém sabia de nada concreto ainda. Não recebi mais nada desde que saí de casa. Eu poderia sair. Poderia perguntar mais no balcão das enfermeiras. Poderia exigir que o médico responsável venha falar comigo. Poderia ligar para um dos arrombados dos meus irmãos. Poderia fazer tanta coisa, mas não consigo. Não consigo fazer nada além de cobrir o rosto com a mão livre e cair fortemente no choro.

Todas as lágrimas que choreiWhere stories live. Discover now